Teste de remédio falha na França — um paciente tem morte cerebral e cinco adoecem
Hospital de Rennes, na França, para onde foram levados os pacientes |
Um paciente teve morte cerebral e outros cinco permanecem hospitalizados
após a ingestão de uma droga em fase experimental na França, de acordo
com o Ministério da Saúde do país.
A nova droga estava em testes clínicos de fase 1, a primeira etapa
realizada com humanos após os testes em animais. A finalidade dessa
etapa é avaliar a segurança do medicamento.
A molécula leva o nome provisório de BIA 10-2474 e foi desenvolvida para
tratar transtornos de humor, ansiedade e doenças neurodegenerativas
(como o mal de Alzheimer). Sua ação é em receptores endocanabinoides,
ligados à dor e alvos de alguns componentes encontrados na maconha.
FASE A FASE
Veja como funcionam os testes clínicos de novas drogas e o que aconteceu na França.
PRÉ-CLÍNICA
- Primeiro, as drogas são testadas em animais
- Se for tóxica ou não funcionar, ela não segue adiante
FASE 1
- O teste é feito com algumas pessoas saudáveis
- A ideia é ver se a substância é segura. A eficácia ainda não é avaliada
FASE 2
Com poucos voluntários, deseja- se saber se a substância, além de segura, tem chances de funcionar
FASE 3
Realizado com milhares de indivíduos, o teste avalia se a droga consegue tratar a doença em questão
PRODUÇÃO
Comprovado um grau suficientemente grande de eficácia na fase 3, o medicamento pode obter licença para a produção
Seis pacientes, todos do sexo masculino, de 28 a 49 anos, ingeriram a
droga no domingo (10.jan.2016). Após se sentirem mal, eles foram levados
ao Centro Hospitalar Universitário da cidade francesa de Rennes.
No total, 128 homens de 18 a 55 anos participavam do estudo. Deles, 90 tomaram a droga e o restante tomou placebo.
Gilles Edan, chefe da seção de neurociência do hospital, disse ao jornal
"Le Monde" que os pacientes hospitalizados podem ter sofrido danos
neurológicos irreversíveis.
O teste, patrocinado pela farmacêutica portuguesa Bial e conduzido na
França pelo laboratório Biotrial, foi suspenso na segunda-feira
(11.jan.2016).
SEGURANÇA EM VISTA
Veja o que é avaliado na fase 1 de um estudo clínico.
Voluntários
Eles são saudáveis e são informados de que pode haver eventos adversos. Mortes são raríssimas.
Farmacocinética
Em uma droga oral, é visto quando e qual é o pico sanguíneo de absorção e quanto tempo demora para ela sair do organismo.
Toxicidade
É avaliada por meio de reações adversas como vômitos, febre, tontura, além de exames de sangue.
Farmacodinâmica
Verifica-se como a droga está atuando em seu alvo biológico e se tem potencial para funcionar.
Ajuste de dose
Doses progressivas são avaliadas em diferentes grupos de pacientes, até atingir a dose ótima.
Entenda o caso
Droga
A droga BIA 10-2474 foi administrada oralmente para voluntários saudáveis durante a fase 1 de um ensaio clínico.
Ela é candidata a tratar problemas de humor, ansiedade e doenças
neurodegenerativas, agindo no sistema endocanabinoide, ligado à sensação
de dor e à ansiedade.
Empresas
A droga pertence à farmacêutica portuguesa Bial; os testes foram
conduzidos pela empresa Biotral, baseada na cidade francesa de Rennes.
Aprovação
Todas as pesquisas com humanos necessitam de aprovação de comitês de ética para sua realização.
O que deu errado?
Pode ser um erro de dosagem a partir dos testes em animais, uma reação
imprevisível ou erro na fabricação dos comprimidos ou na seleção de
pacientes.
A ministra da Saúde da França, Marisol Tourain, viajou a Rennes na
sexta-feira (15.jan.2016), após solicitar uma investigação sobre o
laboratório e as condições em que realiza testes clínicos. "Iremos até o
fundo desse acidente trágico", declarou.
O grupo Bial declarou que respeitou as regras internacionais e a "legislação" vigentes e prometeu colaborar com a investigação.
O laboratório Biotrial, em Rennes, responsável pelo experimento na França |
RARIDADE — De acordo como médico oncologista Gilberto Lopes Jr, professor da
Universidade Johns Hopkins (EUA) e pesquisador responsável por testes de
novas drogas no Brasil e no exterior, esse tipo de acontecimento é
raro.
"Quase nunca há uma surpresa desse tipo, mas pode acontecer", diz.
Efeitos adversos geralmente são vistos em fases posteriores do ensaio
clínico, que reúnem centenas ou milhares de pacientes, aumentando também
a variabilidade desse universo de pacientes.
Dentre as explicações possíveis para o que o ministério francês
classificou como acidente podem estar erros de definição da dose da
droga a ser aplicada em humanos. Geralmente, usa-se apenas uma fração da
dose que tratou adequadamente um modelo animal.
Outra explicação pode ser uma questão operacional, como erros na
fabricação dos comprimidos ou na avaliação e aceitação dos voluntários
— eles poderiam não ser saudáveis, por exemplo.
Embora mortes sejam raras durante testes clínicos, os pacientes que
entram estudos clínicos estão cientes de que pode haver reações
adversas, e cabe à patrocinadora do estudo providenciar os cuidados
médicos quando necessário.
No caso do analgésico e anti-inflamatório talidomida, só foram
descoberto seus efeitos danosos aos fetos após sua comercialização.
Hoje se sabe que uma dose única de 50 mg do medicamento já pode provocar teratogênese — más-formações nos fetos.
TESTES NO BRASIL — No Brasil, há uma baixa cultura de participação em ensaios clínicos e
uma raríssima incidência de estudos de fase 1. Geralmente, o país
embarca em estudos internacionais de fase 3 que envolvem milhares de
pessoas, fornecendo pacientes para avaliar a eficácia da droga.
Isso porque, como a amostra da fase 1 é pequena, as farmacêuticas
preferem conduzir os testes perto de suas sedes no exterior, onde a
descoberta de novas drogas é mais intensa que no Brasil.
Outra diferença é que no Brasil não é permitido receber dinheiro para
participar de um estudo clínico. Só é possível obter uma espécie de
compensação financeira, mais baixa, por conta dos riscos como voluntário
dos primeiros testes em humanos de uma nova droga. Os pacientes desse
estudo na França recebiam € 1.900 (R$ 8.400).
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