domingo, 17 de janeiro de 2016




Por que Cerveró é tão temido — o ex-diretor da Petrobras e da BR Distribuidora deu uma amostra, em um depoimento, do estrago que pode causar em Brasília



DEPRESSÃO — Nestor Cerveró, delator da Lava Jato. Na prisão em Curitiba,
o ex-diretor se desesperou


Nestor Cerveró está preso há um ano. Passavam 30 minutos da meia-noite quando o ex-diretor da área internacional da Petrobras foi algemado por policiais federais, no dia 14 de janeiro de 2015. Ele chegava ao Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, de uma viagem a Londres. Depois do pouso, avisou o filho Bernardo Cerveró por mensagem de celular: “Já cheguei”. Bernardo respondeu que chegaria em “20 minutos”. Pouco depois, o pai escreveu: “Bernardo, estão me prendendo na Polícia Federal”. O rapaz perguntou: “Preso? Ou retendo? Fica tranquilo”. Não houve tréplica. Começava a temporada de Cerveró na carceragem de Curitiba da Polícia Federal. O ex-diretor já respondia a uma ação penal pelo recebimento de propina na compra de duas sondas para a Petrobras, mas só teve a prisão decretada depois que tentou sacar quase R$ 500 mil de um fundo de previdência. Logo veio uma segunda ação penal, em que Cerveró foi acusado de comprar um apartamento no Rio de Janeiro com dinheiro ilícito de uma offshore uruguaia. A primeira condenação, em maio, foi de cinco anos de prisão. Em agosto, uma nova pena de 12 anos pelo recebimento de propina na compra das duas sondas. Terminou assim a disposição de Cerveró de enfrentar o cárcere.
Cerveró dava sinais de depressão profunda na cadeia. Passava o dia concentrado em joguinhos no iPad que foi autorizado a usar. Tinha oscilações drásticas de humor, evidenciadas na convivência na prisão com o lobista Fernando Soares, o Baiano, seu amigo e operador de propina em negócios na estatal. Num dia, Cerveró fez necessidades na pia da cela do lobista. No outro, quando Baiano seguia para prestar depoimento de sua delação, o ex-diretor brincou ao girar os dedos em torno dos olhos: “Tô de olho, Baiano”.
Cerveró estava descompensado. Em julho do ano passado, começou a negociar uma delação premiada. Agia contra a vontade de seu então advogado, Edson Ribeiro. Hoje, sabe-se por que o defensor temia tanto que Cerveró falasse. Ribeiro está preso. Foi flagrado em uma conversa com o senador petista Delcídio do Amaral, também preso, armando uma chantagem e, quiçá, uma fuga de Cerveró. Tudo para evitar que o ex-diretor revelasse o que conhece dos esquemas na estatal — enquanto representava Cerveró, Ribeiro advogava, na verdade, por Delcídio, padrinho político do ex-diretor. Cerveró foi adiante com a negociação com os procuradores e, em novembro, fechou o acordo.
No dia 7 de dezembro, Cerveró prestou um depoimento em Curitiba. Nele, apontou os interesses que o levaram ao cargo de diretor financeiro da BR Distribuidora depois de ter ocupado por cinco anos a Diretoria Internacional da Petrobras — e o que fez para retribuir as indicações. Cerveró delineia como cada degrau de sua ascensão dentro da estatal correspondia a uma conveniência política a ser atendida. Mostra, também, como Cerveró se tornou o mais versátil dos diretores da Petrobras envolvidos no gigantesco esquema de corrupção. Diferentemente de Renato Duque, diretor de Serviços intensamente dedicado a abastecer os cofres do PT, e de Paulo Roberto Costa, diretor de Abastecimento mais ligado ao PP, Cerveró era um súdito de muitos senhores: PT, PMDB e PTB.
Embora Cerveró seja ciclotímico e esteja sob fortíssimo estresse, ele revela, aos poucos, que aprendeu a jogar com sua imensa vocação em seguir ordens e em satisfazer as expectativas de seus patrocinadores políticos. Agora, usa esse talento para, com a delação, se livrar de muitos anos em uma cela. É comum que o delator revele paulatinamente o que sabe. Obviamente, ele não pode omitir ou mentir. Mas, especialmente nas passagens que demandam a memória do colaborador, corriqueiramente precisa-­se de mais de um depoimento. Na sessão do dia 7, o termo 11/12 da delação, Cerveró deu uma pequena amostra do que tem a oferecer. No testemunho registrado em meras seis páginas, Nestor Cerveró exibe o potencial de estrago que fazia seu advogado tremer. Encadeando episódios cronologicamente, o ex-diretor narra a promiscuidade com políticos que o usavam sem descanso e como isso acontecia com o aval dos donos das canetas que concedem cargos a parlamentares, cedendo desavergonhadamente ao fisiologismo.
Antes do termo da delação, vale recapitular como Cerveró chegou ao posto de diretor internacional da Petrobras. Na estatal desde 1975, foi a partir de 1999 que a carreira de Cerveró deslanchou. Naquele ano, Delcídio do Amaral, então um quadro do PSDB, assumia a direção de Gás e Energia. Nascia uma profícua parceria. Cerveró, engenheiro químico que entrara na Petrobras por concurso público e passara 24 anos sem brilhantismo algum, era a nova estrela da maior empresa do Brasil. Em 2002, Delcídio deixou a Petrobras e migrou para o PT, para tentar uma vaga no Senado. Mas jamais abandonou Cerveró. Eleito, Delcídio bancou, em 2003, a ida de Cerveró para a diretoria internacional. Delcídio nega o controle sobre o ex-diretor. Empurra Cerveró para o colo do presidente do Senado, Renan Calheiros — que, sim, também foi responsável pela manutenção de Cerveró no cargo. Logo que foi preso, Delcídio disse que apenas “avalizou” a indicação de Cerveró feita à presidente Dilma Rousseff por Renan. O peemedebista, por óbvio, nega. Ninguém quer o ônus de ter Cerveró como protegido.
Foi na Diretoria Internacional que Cerveró passou a dar retorno aos políticos que o promoveram. Cerveró foi o autor do “resumo executivo” — que classificava a compra da Refinaria de Pasadena, em que a Petrobras desembolsou US$ 1,2 bilhão por uma refinaria nos Estados Unidos adquirida, um ano antes, por US$ 42 milhões, como um bom negócio. O relatório foi avalizado, em seguida, por Dilma, então presidente do conselho da estatal. Depois da compra da refinaria, ainda era preciso um investimento em obras para modernizar as instalações, o que, no jargão da indústria do petróleo, é conhecido como revamp. Conforme se revelou em setembro, quando propôs o acordo de delação premiada aos procuradores da República, Cerveró afirmou que, ao se acertar que esse contrato ficaria com a Odebrecht, acertou-se também que R$ 4 milhões de propina iriam para a campanha à reeleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2006. Em seu depoimento, porém, Cerveró disse que o acerto foi de que a UTC, de Ricardo Pessôa, associada em consórcio com a Odebrecht no revamp, pagaria a propina de R$ 4 milhões e que o destino final do dinheiro seria definido por Delcídio. Esse ponto ainda é investigado pelos procuradores da República e o ex-diretor está sendo questionado sobre a contradição. Cabe ao Ministério Público e à Polícia Federal respaldar as acusações em provas materiais antes de usar as denúncias contra eventuais acusados ou solicitar à Justiça a punição do delator por mentiras ou omissões.



INSATISFAÇÃO — o presidente do Senado, Renan Calheiros. Segundo Cerveró, expectativas não foram atendidas
e ele retirou o apoio ao afilhado


Cerveró cita o ex-presidente Lula em seu depoimento ao relatar outro episódio na Diretoria Internacional: a operação do navio-sonda Vitoria 10.000. Ao depor em Curitiba, Cerveró diz que sua nomeação para a diretoria financeira da BR Distribuidora, em 2008, foi um ato de “gratidão” do PT e de Lula.
Por que os petistas estavam tão “gratos”, na visão de Cerveró? Porque Cerveró dera, em 2006, a operação do navio-sonda à Schahin Engenharia, em um contrato de US$ 1,6 bilhão — Cerveró responde a uma terceira ação penal por isso. Com o contrato, Cerveró ajudava a quitar uma dívida do PT com o Banco Schahin, do mesmo grupo, obtida em 2004, quando o lobista José Carlos Bumlai pegou um empréstimo de R$ 12 milhões para pagar o empresário Ronan Maria Pinto, de Santo André. Segundo as investigações da Lava Jato, Ronan tinha informações graves sobre o PT e o partido precisava agir para calá-lo. Cerveró diz que “havia um sentimento de gratidão do Partido dos Trabalhadores” e que, “como reconhecimento da ajuda do declarante nessa situação, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva decidiu indicar o declarante para uma diretoria da BR Distribuidora”. Cerveró foi recompensado com o novo posto, encerrando seu ciclo na Petrobras e partindo para um período em sua maior subsidiária, onde serviria a novos amos.



PRESTÍGIO — o senador Fernando Collor. Segundo Cerveró, sua influência na BR foi endossada por Lula e Dilma


No mesmo depoimento prestado em dezembro, o ex-diretor descreve a distribuição de diretorias na BR Distribuidora, em 2009, de acordo com partidos políticos agraciados — e afirma que Lula concedera “influência” ao senador Fernando Collor, do PTB, por meio de duas cadeiras: a de Operações e Logística e a de Rede de Postos de Serviços. No ano seguinte, Collor, segundo Cerveró, cobrou a conta de seus afilhados. O senador pediu que a BR comprasse “uma grande quantidade de álcool, no valor de R$ 1 bilhão, de usinas de Alagoas” — o que, na prática, seria uma concessão de crédito a essas usinas por meio da compra de uma safra antecipada, ação proibida na BR. O negócio não vingou. Mas Collor continuou exercendo a tal influência na BR. Cerveró, Collor (por meio de seu operador, Pedro Paulo Leoni Ramos) e Delcídio do Amaral se reuniam periodicamente no Copacabana Palace, entre 2010 e 2013. Antes disso, em 2009, um encontro no mesmo local contou com a presença de Renan Calheiros. Na conversa, o então presidente da BR, José de Lima Andrade Neto, “foi bastante didático” ao explicar em que áreas os diretores deveriam concentrar o esquema. Insatisfeito com a perfomance de Cerveró, em 2012 Renan chamou o diretor em seu gabinete no Senado. “Calheiros reclamou da falta de repasse de propina”, disse Cerveró em seu depoimento, acrescentando que o senador decidiu retirar o apoio político a ele naquele momento.
Cerveró ainda contava com o suporte de Collor. Dessa vez, segundo ele, com o endosso da presidente Dilma. De acordo com o ex-diretor, em setembro de 2013 Collor o convidou para visitar a Casa da Dinda, em Brasília. Collor disse que havia conversado com a presidente Dilma, “a qual teria dito que estavam à disposição de Fernando Collor de Mello a presidência e todas as diretorias da BR Distribuidora”. Em um simples termo de delação, Cerveró relatou as conexões que garantiram sua carreira na Petrobras, de 2003 a 2014. O depoimento sugere que ainda há muito a ser revelado. Se Cerveró não mentir, voltará para casa em 24 de junho deste ano, para cumprir sua pena em regime domiciliar.






Nenhum comentário:

Postar um comentário