Debate sobre a publicação de
‘Minha luta’, de Adolf Hitler, chega ao Brasil — em domínio
público, duas novas edições serão lançadas, mas só uma delas
comentada
Em "Minha luta", seu principal manifesto político, Adolf Hitler
articulou suas ideias antissemitas, racistas, homofóbicas e eugênicas |
Depois de sete décadas fora das prateleiras das livrarias, o livro
“Minha luta”, de Adolf Hitler, caiu em domínio público no dia 1º de
janeiro deste ano. Na Alemanha, o número de encomendas da nova
edição crítica superou em quatro vezes a tiragem inicial. No Brasil,
onde o livro foi publicado pela primeira vez em 1935, a Geração
Editorial e a Centauro Editora decidiram enfrentar a polêmica em
torno da obra e reeditá-la. Prevista para março, a edição da Geração
será comentada. A da Centauro, que já começou a ser distribuída,
virá apenas com o texto integral original. Terceira editora
brasileira que publicaria a obra, também sem comentários, a Edipro
voltou atrás na quinta-feira passada (14.jan.2016).
As razões alegadas pela editora paulista para cancelar o projeto vão
no cerne da discussão sobre “Minha luta”, uma obra que defende
abertamente ideias fascistas, racistas, homofóbicas, antissemitas e
eugênicas. Em nota, a Edipro alegou que considera o livro “um
documento histórico e de relevância para os estudiosos,
pesquisadores e principalmente para a comunidade acadêmica” e por
isso iria lançá-la. No entanto, mudou de ideia pelas “críticas
surgidas principalmente de nossos leitores de que essa tradução [de
Julio de Matos Ibiapina], por ser antiga, não possuir comentários,
interpretações ou notas explicativas, poderia ser mal entendida pelo
público leitor, tendo consequências maléficas a todos que tiveram
seus direitos humanos desqualificados ou vilipendiados”.
Luiz Fernando Emediato, publisher da Geração Editorial, defende a
publicação do livro. Na sua opinião, a tragédia que provocou e a
proibição de reedições desde 1945 pelo governo da Baviera, detentor
dos direitos autorais, criaram um mito em torno de “Minha luta”.
— Não é possível entender a mente de Hitler sem ler seus textos. Não
é possível combater completamente e honestamente suas ideias sem
combatê-las na fonte — argumenta o publisher, reforçando que as
ideias do livro são “racistas, violentas e abomináveis”.
A edição da Geração Editorial está sendo preparada há mais de três
anos. O tradutor Willian Lagos verteu o texto direto do alemão para
o português. A introdução, as notas e os apêndices foram traduzidos
da edição norte-americana de 1939. Haverá ainda textos do próprio
Emediato, do historiador e professor da USP Nelson Jahr Garcia,
morto em 2002, e da professora da PUC-Rio Eliane Hatherly Paz. O
publisher estima que o livro deve ter cerca de mil páginas, das
quais o texto original ocupará 600. Ele reconhece que é preciso
tomar alguns cuidados ao lançar a obra. A editora estuda ainda
imprimir uma sobrecapa, que teria apenas nome de autor e obra, por
cima da original.
— A apologia do nazismo é crime, assim como racismo é crime.
Acredito que publicar “Minha luta” sem os necessários cuidados pode
ser crime. Nossa editora é democrática e não está a serviço de
nenhuma causa do bem do ou mal. Nossa edição conterá todas as
advertências — diz Emediato.
Adolf Hitler recebido com a tradicional saudação nazista na Alemanha em 1933 |
Já Adalmir Caparros Fagá, sócio da Centauro Editora, não vê
necessidade de uma edição comentada. A casa lançou “Minha luta”, com
tradução de Klaus von Puschen, em 2001. Contudo, em 2007, após ser
notificada pelo governo da Baviera, a Centauro retirou o livro de
circulação e agora vai relançá-lo. Em 2005, a companhia foi acionada
judicialmente pelo Ministério Público do Rio por causa do livro, mas
a simples publicação, por ser de autor conhecido, não foi
considerada crime.
Pela sua experiência anterior, Fagá espera dificuldades na
comercialização da obra nas livrarias. Mesmo quando as lojas
aceitavam comercializar a obra, em geral o faziam discretamente e
não a deixavam exposta. Agora, o editor acredita que o problema será
menor por causa da popularização das compras pela internet. Ele
ressalta que a Centauro não defende nenhuma bandeira e acredita que
ninguém vai virar nazista por ler o livro.
— Não acho que uma pessoa vai ler e se transformar num nazista. Isso
é chamar o brasileiro de burro. Esconder esse texto das futuras
gerações não é bom. Para combater o nosso inimigo, devemos
conhecê-lo — afirma o editor, que não descarta fazer uma versão
comentada no futuro.
Prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald durante a II Guerra Mundial |
“SEM VALOR FILOSÓFICO”
“Minha luta” não foi escrito diretamente por Hitler, mas ditado por
ele ao seu ajudante de ordens, Rudolf Hess, quando estava na
penitenciária estatal da Baviera após o malsucedido putsch de
Munique, em novembro de 1923. A obra, o seu grande manifesto
político, foi lançada na Alemanha em dois volumes, o primeiro em
1925 e o segundo em 1926, quando seu autor já estava em liberdade. A
primeira edição no Brasil saiu em 1935, com exclusividade, pela
Editora do Globo, de Porto Alegre.
O historiador Mateus Dalmáz, que fez sua dissertação de mestrado
sobre as representações do Terceiro Reich na imprensa gaúcha, conta
que o livro foi promovido como o principal lançamento da política
internacional no momento, sem entrar no mérito das suas ideias
racistas e antissemitas. Dalmáz explica que a editora estava longe
de ser simpatizante do nazismo, mas era, sim, alinhada ao presidente
Getúlio Vargas.
— Nos anos 1930, a conjuntura no Brasil era de um país muito amigo
da Alemanha nazista. Já na década seguinte, quando Getúlio rompe com
o Eixo e entra na guerra do lado dos aliados, “Minha luta” é
proibido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP, criado em
dezembro de 1939) e não foi mais editado pela Editora do Globo —
afirma o historiador, lembrando uma situação curiosa vivida pela
editora. — Quando foi lançada a obra, ela divulgou na orelha outros
títulos seus, e a embaixada alemã no Brasil reclamou, porque alguns
autores eram judeus. Na segunda tiragem, a editora trocou as obras.
Só que os outros que entraram também eram judeus, e a embaixada
reclamou de novo. Mas aí a editora disse que não ia mais mexer
porque não investigava se os autores eram judeus ou não.
Judeus no campo de concentração nazista de Auschwitz na Polônia Arquivo/The Hulton Deutsch Collection/1939 |
O historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, hoje professor
visitante na Universidade Livre de Berlim, é um crítico contumaz da
reedição de “Minha luta”. Para o professor, a obra de Hitler é
somente um instrumento de propaganda e convencimento. Na Alemanha,
ele explica, o livro sempre esteve disponível para a consulta de
pesquisadores nos arquivos. No entanto, assim como para acessar os
documentos referentes ao Holocausto e demais genocídios, é preciso
assinar um termo de responsabilidade. Silva lembra ainda que “Minha
luta” já foi exaustivamente analisado em diversas obras publicadas
em português, o que é suficiente até para os pesquisadores.
— Trata-se de um livro de propaganda nazista, sem valor filosófico,
histórico nem biográfico, já que Hitler mentiu ali. A única forma
pedagógica de expor o nazismo é pelos seus resultados, não pelas
suas promessas. E o livro são as suas promessas — diz o historiador.
— O livro foi utilizado como um manual de doutrinação e voltará a
ser. Estamos num momento de ódio ao outro na sociedade, de ódio ao
diferente. É só ver o parlamento brasileiro. A publicação dessa obra
vai favorecer enormemente a expansão da ideologia nazista e a
reorganização desses grupos no mundo.
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