O risco dos testes de novas drogas — a
tragédia francesa é similar a outra, que aconteceu em Londres, em 2006 —
estamos fazendo o que podemos para preservar os voluntários?
Sede da empresa Biotrial, que teste novas drogas na França. Um voluntário teve morte cerebral e outros cinco estão internados após testar analgésico. |
A notícia da morte cerebral de um voluntário que testava um novo
medicamento na França coloca em evidência um assunto incômodo: como
garantir a segurança de quem testa drogas que, no futuro, beneficiarão a
todos nós? Além do voluntário, outros cinco foram hospitalizados em um
hospital na cidade de Rennes, depois de participar de um estudo clínico
de um novo analgésico, derivado da maconha. Os voluntários foram
internados após participar da primeira etapa clínica da droga testada
pela empresa Biotrial, especializada em conduzir esse tipo de estudo
para a indústria farmacêutica. A informação veio a tona na sexta-feira,
dia 15.jan.2016, e o teste foi suspenso.
As exigências relacionadas às pesquisas clínicas, que garantem a
segurança e a eficácia dos medicamentos que usamos, nunca foram tão
grandes. Ainda sim, não eliminam os riscos. Em países da Europa, onde
aconteceu o incidente, nos Estados Unidos e no Brasil, inclusive, as
drogas passam por estudos pré-clínicos, feitos no laboratório em células
e em animais, antes de passarem por mais três fases de pesquisa até
serem aprovadas e chegarem ao mercado (onde continuam sob monitoramento
de agências de vigilância sanitária e do fabricante, em busca de outros
efeitos colaterais e interações medicamentosas não detectadas nas etapas
anteriores). Após os estudos pré-clínicos, a fase 1 é feita em pessoas
saudáveis e as fases 2 e 3 em pacientes com a condição a que a droga se
destina a tratar.
Todas essas etapas são aprovados por comitês de ética, que zelam pelo
cumprimento de regras que garantam a segurança dos voluntários que
aceitam participar dos testes. Nos Estados Unidos e na Europa, é comum
que os voluntários saudáveis sejam remunerados pelo tempo que dispuseram
a gastar para testar a droga. No Brasil, uma mudança de 2013 na
legislação que rege as pesquisas clínicas passou a permitir a
remuneração de voluntários sadios, mas não determina os critérios de
pagamento. Por mais que exista a vigilância para garantir a segurança
dos voluntários, há riscos importantes a que eles se expõem, o que torna
ainda mais delicado o fato de eles serem remunerados. É possível —
provável, na verdade — que muitos aceitem correr riscos apenas porque
precisam do dinheiro. É uma questão incômoda para a qual a bioética
ainda tem poucas respostas.
O melhor que se pode fazer é reduzir ao máximo qualquer risco a que
esses voluntários, chamados sujeitos de pesquisa, possam correr. Logo
após a revelação da morte cerebral do voluntário francês, especialistas
vieram a público ressaltar um fato constrangedor: não estamos fazendo
tudo o que poderíamos. Pelo menos é o que a recente tragédia francesa,
semelhante a um evento anterior na Inglaterra, em 2006, atesta. Desde
então, muito pouco mudou, apesar das recomendações elaboradas por uma
comissão de especialistas organizada pelo governo britânico.
Em 2006, seis voluntários — até então saudáveis — foram internados em um
hospital, em Londres, com disfunção múltipla dos órgãos. Eles haviam
participado da primeira etapa clínica de um agente, então chamado
TGN1412, destinado a tratar um tipo de leucemia e artrite reumatoide.
Poucos minutos após receber a droga, os voluntários começaram a
apresentar sintomas que evoluíram para o colapso dos órgãos. Após meses
no hospital, todos receberam alta, mas a avaliação dos médicos indicava
que eles sofreriam consequências pelo resto da vida. O sistema de defesa
do corpo havia sido alterado de maneira, aparentemente, permanente.
As investigações revelaram que o agente em teste, quando no organismo
humano, teve uma resposta totalmente diferente da observada em animais
de laboratório. A comissão de especialistas do governo britânico afirmou
que não havia muito o que fazer para prever esse efeito inesperado.
Todas as normas haviam sido seguidas. Críticos afirmaram que usar,
simultaneamente, em seis pessoas um medicamento nunca testado em humanos
fora arriscado demais. O ideal seria usar em uma pessoa e ir expandindo
o teste. Mas quem seria o sorteado? É outra questão bioética complicada
e sem resposta. O mais curioso é que a droga continuou a ser testada
após o evento adverso, mas por uma empresa russa que comprou os direitos
da empresa alemã TGenero Immuno, que realizara os primeiros testes e
foi à falência após o incidente. A fase 2 do estudo clínico começou em
junho deste ano e a dose testada será muito menor, cerca de 0,1% do que
os primeiros voluntários receberam.
Com a tragédia recente do laboratório francês Biotrial, ficou claro que
quase nada mudou na área desde 2006. No relatório, divulgado no mesmo
ano da tragédia, os especialistas britânicos ressaltaram que todos os
dados dos estudos pré-clínicos deveriam ser publicados abertamente, para
que pesquisadores independentes tivessem acesso. Essa é uma
reivindicação já há alguns anos de um movimento cada vez mais vocal na
Europa. O AllTrials, encabeçado pelo psiquiatra britânico Ben Goldacre,
quer que todos os dados de novas drogas e até de medicamentos já à venda
sejam divulgados publicamente. É uma maneira de permitir que
pesquisadores independentes reavaliem as informações descobertas pelas
empresas que desenvolvem medicamentos e que podem ser convenientemente
escondidas para apressar a entrada no mercado de uma nova droga. A
publicação de estudos que deram errado — como é o caso do realizado em
2006 na Inglaterra e da droga francesa — também são fundamentais.
Frequentemente, eles são engavetados e nunca chegam a ser divulgados, o
que aumenta o risco de que algum outro grupo cometa o mesmo erro.
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