segunda-feira, 24 de agosto de 2015


Com receita 22% menor, maioria dos estados descumpre limite da lei fiscal

O recuo na economia afetou fortemente as finanças dos estados brasileiros. A crise aguda no Rio Grande do Sul, estampada nas manchetes nos últimos dias, não é isolada. Em maior ou menor grau, todos enfrentam dificuldades que decorrem de uma combinação perversa: queda acentuada na arrecadação e aumento dos gastos obrigatórios. Levantamento feito, com base nos relatórios de gestão fiscal dos estados, mostra que as receitas despencaram 22,4% no primeiro quadrimestre de 2015, em relação aos últimos quatro meses de 2014. Ao mesmo tempo, os gastos com pessoal, principal dor de cabeça dos governadores, subiram 5,4% no mesmo período.
A análise mostrou ainda que, em abril (último dado disponível), 22 estados tinham ultrapassado algum limite da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Deste total, seis superaram os tetos fixados para gastos com pessoal ou dívida consolidada líquida (DCL). Os demais ficaram acima dos limites prudenciais. Pela lei, esse cenário já imporia punições aos governos regionais. No entanto, a LRF prevê mecanismos de exceção para momentos como o atual, em que o Produto Interno Bruto (PIB) está em queda. Pelas regras, quando a economia cresce abaixo de 1%, dobram os prazos para reenquadramento.

CRISE PIOR DO QUE OS NÚMEROS INDICAM
Para especialistas e secretários de Fazenda ouvidos, a crise nos estados é mais grave do que mostram os indicadores da LRF. Isso porque os índices ainda não captaram a dimensão do problema, que resulta da desaceleração da economia em 2015. A crise também decorre de anos de guerra fiscal e políticas de incentivo a gastos comandadas pelo governo federal.
— Os estados já sofriam perda de espaço histórica, inclusive por uma opção algo suicida de promoverem a guerra fiscal. Se somaram a isso os efeitos de um endividamento patrocinado pelo próprio Tesouro Nacional e uma recessão que afeta suas receitas mais do que a federal. É o pior cenário em termos estruturais e conjunturais — avalia José Roberto Afonso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV) e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
O que se observa hoje nos estados é um quadro de penúria que afeta a vida da população. Há atrasos nos salários de servidores, greves e falta material para escolas e hospitais. Ao mesmo tempo, os secretários de Fazenda implementam programas de ajuste fiscal que envolvem cortes de gastos e aumentos de impostos.

Aviso de greve na porta da 2ª DP de Porto Alegre, que já foi classificada
pela ONG Altus Global Alliance como uma das melhores do Brasil
nos quesitos atendimento ao público e resolução de casos

COM A PALAVRA OS ESTADOS
O secretário de Fazenda do Rio Grande do Sul, Giovani Feltes, admite que a situação do estado, a mais grave do país, é uma combinação entre o atual quadro econômico, que derrubou a arrecadação, e problemas estruturais que foram se agravando ao longo de décadas. Segundo ele, em 37 dos últimos 44 anos, o Rio Grande do Sul gastou mais do que arrecadou. Esse quadro foi mascarado por meio de empréstimos usados para pagar despesas correntes e pelo uso de depósitos judiciais.
Agora, o quadro se agravou, e a dívida do estado chega a R$ 85 bilhões, sendo R$ 50 bilhões com a União. Há passivos com precatórios (R$ 8,3 bilhões), com pagamento de juros decorrentes do uso de depósitos judiciais não tributários (R$ 1,1 bilhão) e pelo não pagamento do piso do magistério (R$ 10 bilhões):
— Como já disse o governador Sartori, já ultrapassamos o fundo do poço.
Feltes afirma que o estado vem adotando medidas para corrigir o quadro. O governo renegociou contratos de serviços, reduziu o pagamento de horas extras e diárias e agora tenta negociar com a União o pagamento de indenizações pela manutenção de rodovias federais feita pelo estado. Mas, mesmo assim, atrasou o pagamento da parcela da dívida com a União em julho e teve os repasses do Fundo de Participação dos Estados (FPE) retidos.

Sergipe atrasou em dez dias o pagamento da parcela da dívida com a União e, segundo o secretário de Fazenda, Jeferson Passos, pode voltar a postergar:
— Esperamos que não aconteça, mas há a possibilidade de que o atraso se repita.
Passos listou consequências da dificuldade financeira pela qual passa o estado. No mês passado, vários servidores tiveram o pagamento parcelado: R$ 2 mil no dia 31 de julho e o restante no dia 11 de agosto. A exceção foram os funcionários da saúde e da educação, que receberam integralmente no dia correto.
Além da queda na receita, Passos destacou outro problema: o déficit da Previdência dos servidores, que se estende desde 2008. A estimativa é que o Tesouro do estado tenha que aportar, até o fim do ano, R$ 950 milhões para cobrir a folha da Previdência. Para contornar o excesso de gasto com pessoal — que estourou o limite máximo permitido pela LRF em 2014 — o secretário conta que teve que extinguir oito secretarias e vários cargos.

A deterioração fiscal fez com que o Paraná começasse a realizar um ajuste fiscal forte em dezembro de 2014, com elevação de alíquotas do ICMS e da contribuição previdenciária dos inativos e pensionistas. Mesmo assim, o estado está acima do limite da LRF para gastos com pessoal em relação à receita corrente líquida (RCL): 53,65%. O máximo permitido é 49%.
— Fizemos um ajuste duro e recebemos muitas críticas — lembrou o secretário de Fazenda do Paraná, Mauro Ricardo Costa.
Mesmo com o ajuste nas contas, recentemente, a agência de classificação de risco Moody’s rebaixou a nota de crédito do Paraná, junto com as de outros estados.
Para Mauro Ricardo, o rebaixamento é resultado de problemas antigos e não reflete o quadro de 2015. Segundo ele, a equipe econômica não tem ajudado os governos regionais, pois está retendo os repasses da Lei Kandir, adiou a mudança dos indexadores dos contratos de dívidas de estados e municípios para 2016 e suspendeu as garantias para empréstimos junto a organismos multilaterais.
— A União está pensando apenas nela mesma e esquecendo estados e municípios — disse Ricardo.

A insatisfação dos secretários com o governo federal é generalizada. A secretária de Goiás, Ana Carla Abrão, afirmou que os estados têm feito esforços para reequilibrar suas finanças, inclusive propondo leis de responsabilidade fiscal estaduais, mas precisam de recursos para investir e o governo federal vem fechando os canais.

No Mato Grosso do Sul, o secretário de Fazenda, Márcio Campos Monteiro, prevê que o agronegócio, base da economia local, não conseguirá segurar a receita, que tem caído mês a mês. Tanto que o estado atrasou a parcela da dívida com a União em julho:
— Estamos no fio da navalha. Talvez por nossa base ser o agronegócio, demoramos mais para sentir o efeito da crise do que os estados em que o PIB depende da indústria. Ainda estamos equilibrados, mas numa linha muito tênue.

O secretário de Fazenda do Distrito Federal, Leonardo Colombini, destacou que a despesa com pessoal no DF saltou 25,23%, entre janeiro e julho, em razão de reajustes que o governo anterior concedeu, sem garantia de receitas. A conta dos reajustes chegará a R$ 1 bilhão no ano. Enquanto isso, a receita tributária caiu 2,7% em termos reais no primeiro trimestre.
— Quando a folha cresce 25% e a receita cai, onde se arranja dinheiro para cobrir o pessoal? Se a gente realmente não tiver algum tipo de receita extraordinária ou a receita não der uma reagida, não dá mais.

O secretário da Fazenda de Alagoas, George Santoro, diz que o estado tem feito um ajuste na Previdência e um aperto da fiscalização tributária. Mas as receitas estão caindo e o governo está impedido de tomar empréstimo para investimentos.
— Acendeu a luz vermelha. Acumulamos algum caixa. Mas, se a situação piorar, não sei se vamos aguentar.

O secretário do Tocantins, Paulo Afonso Teixeira, diz que, com a estrutura de gastos e a folha extensa, além de revisão geral das despesas e auditoria na folha, o estado terá de elevar impostos. Os gastos com pessoal ultrapassam o limite permitido pela LRF e chegaram a 49,96% da receita.
— Já estamos pagando salários no dia 12 e corremos o risco de atrasar. Com essa estrutura de gastos, não dá para sobreviver por muito tempo.

O Ministério da Fazenda foi procurado mas não quis se pronunciar.


O endividamento dos estados e municípios



DÍVIDA CRESCE EM RITMO MAIOR DO QUE A RECEITA
Em três anos, débitos subiram a R$ 584 bi. RS, MG, RJ e SP são os estados que estão em situação mais grave
Nos últimos três anos, a dívida dos 26 estados brasileiros mais o Distrito Federal cresceu dez vezes mais do que a receita. Em 2012, a soma de todos os débitos era de R$ 556,4 bilhões. Em 2014, a cifra tinha avançado 5%, para R$ 584,4 bilhões, já descontada a inflação no período. No mesmo intervalo, a receita cresceu apenas 0,5%, para R$ 531,9 bilhões.
Considera-se aqui a dívida consolidada líquida — ou tudo o que o estado deve menos o que ele tem em caixa e outros recursos, como aplicações financeiras — e a receita corrente líquida. Esta, basicamente, é a arrecadação com tributos e repasses, menos deduções previstas em lei, como transferências constitucionais.
O endividamento, dizem especialistas, é o pano de fundo que explica a situação de penúria de muitos estados. E o crescimento recente desses débitos é explicado, sobretudo, pela ampliação da oferta de crédito público, que acelerou a partir de 2012.
Como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul são estados mais robustos, tradicionalmente com mais acesso a crédito, aproveitaram o incentivo oficial para tomar ainda mais empréstimos. Não por acaso, são os quatro estados com situação mais grave, se considerada a razão entre dívida consolidada líquida e receita corrente líquida, um dos indicadores criados pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para avaliar as finanças públicas. No caso dos estados, essa relação não pode passar de dois. No caso dos municípios, não pode superar 1,2.
— Esses estados são historicamente mais endividados. Desde que renegociaram a dívida com a União, nos anos 1990, mantiveram estoques elevados de dívida. E, a partir de 2012, BNDES, Caixa e Banco do Brasil, dentro de uma política deliberada do governo federal, estimularam ainda mais o endividamento — diz o especialista em finanças públicas Mansueto Almeida. — Mas a receita não acompanhou o ritmo, pois a economia desacelerou.

O Rio Grande do Sul, que deu calote na União, é, por enquanto, o único que extrapolou o limite imposto pela LRF, com a relação dívida/receita de 2,13 em abril de 2015. Minas Gerais vem em seguida, com razão de 1,82. Os mineiros viram sua dívida consolidada líquida subir 7,3% entre 2012 e 2014, enquanto a receita cresceu 4,7% no período, já descontada a inflação.

— Em Minas Gerais, houve aumento da dívida externa. Ao endividar-se em moeda estrangeira, o estado ficou vulnerável a flutuações do câmbio — diz Vilma Pinto, do Núcleo de Economia do Setor Públicos do Ibre/FGV.
Segundo a secretaria estadual da Fazenda de Minas, foram contratadas cinco operações de crédito em moeda estrangeira a partir de 2012, totalizando mais de US$ 4 bilhões. As operações visavam à reestruturação da dívida da Cemig e financiamento de projetos.

No caso do Rio, o crescimento real da dívida foi maior que o mineiro: 8,5% nos últimos três anos. Hoje, a dívida é de R$ 87 bilhões. O que significa que cada fluminense deve R$ 5.286. A receita, porém, avançou só 0,6%. Assim, a relação entre as duas subiu para 1,78. Segundo o secretário estadual da Fazenda, Júlio Bueno, o crescimento da dívida é explicado, em parte, pela contratação de crédito para projetos de infraestrutura, como a linha 4 do metrô, que ligará a Zona Sul a Barra da Tijuca.

Mansueto alerta que, com o crescimento médio anual do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro para os próximos quatro anos previsto em torno de 0,4%, a crise fiscal está longe de acabar. Para Ricardo Humberto Rocha, professor de Finanças do MBA do Insper, caminha-se para uma solução que passará pela alta de impostos. Semana passada, secretários da Fazenda de diversos estados iniciaram discussões com este objetivo.
— Provavelmente vamos caminhar para alta da carga tributária. Vivemos uma irresponsabilidade orçamentária — disse Rocha.


DÍVIDA CRESCE COM INCENTIVO DE BANCO PÚBLICO E AUMENTO DE GASTOS
Até 1994, a inflação galopante mascarava os gastos públicos
Para entender a crise fiscal atual por que passam estados e municípios é preciso voltar no tempo. Até 1994, quando o Plano Real foi lançado e a estabilização da moeda alcançada, a inflação galopante mascarava os gastos públicos. Sem referência para balizar valores de obras ou despesas em geral, os orçamentos eram pouco questionados, dando margem para que os governos se endividassem além da conta. Como a economia andava de lado, a arrecadação com tributos e transferências não era suficiente para cobrir as despesas. Estados e municípios, então, seguiam contraindo empréstimos sem se preocupar com o dia de amanhã.
Com o fim da inflação, vieram à tona os desequilíbrios nos orçamentos. E os juros altos — um dos remédios para manter os preços sob controle — fizeram as dívidas explodirem. Para evitar um colapso sistêmico, em 1997, a União federalizou os débitos, ou seja, assumiu as dívidas. Estados e municípios passaram, então, a dever não mais a instituições financeiras com quem haviam contratado crédito e, sim, ao governo federal, com 30 anos para pagar.
A contrapartida foi a exigência de aval ou garantia do Tesouro Nacional para que estados contraíssem novos empréstimos. Paralelamente, houve a aprovação, em 2000, da Lei de Responsabilidade Fiscal, que buscou dar transparência aos gastos públicos e criou indicadores para impor o controle desses gastos.
O limite do aceitável para o tamanho da dívida, por exemplo, passou a ser o dobro do tamanho da receita, no caso dos estados. Para os municípios, a dívida não pode ser 1,2 vez maior que sua receita. E os gastos com pessoal não podem exceder 60% da receita.
O conceito de dívida aqui é o da chamada dívida consolidada líquida, ou tudo o que o estado ou município deve menos o que tem em caixa e recursos, como o de aplicações financeiras. No caso da receita, trata-se da receita corrente líquida. Isto é, a receita corrente — com impostos e contribuições, por exemplo — menos as deduções previstas em lei, como transferências constitucionais.
Por um tempo, as dívidas de estados e municípios pareciam caminhar para uma certa estabilidade. Mas, a partir de 2007, quando o ritmo de crescimento da economia brasileira avançava a passos mais largos, os governantes se sentiram estimulados a gastar mais e contraíram novos empréstimos.
Com a crise financeira internacional, que eclodiu em 2008, o governo federal passou a incentivar a oferta de crédito por bancos públicos. E lá foram estados e municípios bater à porta das instituições. De 2012 em diante, esse comportamento se acentuou, levando a dívida de muitos entes da federação a crescer num ritmo bem maior do que o de suas receitas.
Os gastos públicos também aceleraram com a política de valorização do salário mínimo nos últimos anos, uma vez que o piso serve de base para muitos salários do funcionalismo. Quando a crise econômica chegou, no fim do ano passado, estados e municípios passaram a sofrer com a queda ou desaceleração na arrecadação, tornando a situação de elevado endividamento insustentável.


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