quarta-feira, 2 de março de 2016


Juiz de Nova Iorque dá primeira vitória à Apple contra o FBI — empresa ganha um caso em tribunal num momento em que enfrenta uma batalha dura contra as autoridades americanas






A batalha que está a decorrer nos tribunais norte-americanos entre a Apple e o FBI conheceu esta semana um importante desenvolvimento, que à primeira vista parece beneficiar a posição da empresa de tecnologia. Numa decisão inédita, um juiz de Nova Iorque recusou um pedido para que a Apple ajude a polícia federal a derrubar o sistema de segurança do iPhone de um traficante de droga, num caso menos mediático mas semelhante ao que envolve o celular de um dos terroristas que mataram 14 pessoas no condado de San Bernardino, na Califórnia.
Numa decisão explicada em 50 páginas, o juiz James Orenstein, conhecido pelas suas posições públicas a favor dos direitos de privacidade, não se limita a rejeitar o pedido do FBI. Em várias passagens chega a insinuar que o governo federal norte-americano poderia acabar por impor um estado totalitário sem qualquer proteção para os cidadãos, ao basear o seu pedido numa lei aprovada em 1789, conhecida como All Writs Act, que basicamente diz que os tribunais podem agir para fazer cumprir ordens que não estejam previstas na legislação em vigor.
Na sua resposta, o juiz considerou que invocar essa lei com 227 anos para obrigar uma empresa privada como a Apple a colaborar na investigação de um crime em que não teve qualquer intervenção direta é "ridículo", e que aprovar o pedido do FBI e do Departamento de Justiça poria em causa "a proteção mais geral contra a tirania, que segundo os pais fundadores exigia uma cuidada separação dos poderes governamentais".
Em termos gerais, o juiz disse que o governo dos Estados Unidos não pode invocar uma lei que tem como objetivo colmatar um vazio legal porque nem sequer existe qualquer vazio legal — em 1994, o Congresso aprovou a lei Communications Assistance for Law Enforcement Act, que abrange operadoras de telecomunicações mas deixa de fora empresas de "serviços de informação" como a Apple. Para o juiz James Orenstein, seria inconstitucional que os tribunais se sobrepusessem ao Congresso no seu poder legislativo, pelo que esta confusão terá de ser desfeita em Washington.
Numa das passagens da decisão, o juiz deixou a ideia (defendida pela Apple) de que a intenção do governo federal não é apenas desbloquear um iPhone mas sim estabelecer um precedente para poder ter cobertura legal sempre que exija às empresas de tecnologia que obedeçam a todos os seus pedidos — o problema, diz o juiz, é que a lei de 1789 não serve de argumento, já que o Congresso tem deliberadamente deixado de fora empresas como a Apple da obrigatoriedade de cumprirem todas as ordens do governo em termos de investigações criminais.
Um momento decisivo — Mais do que a discussão sobre se a Apple consegue ou não consegue aceder às mensagens e às fotografias de um iPhone que está bloqueado com um código definido pelo seu utilizador (ou a sua variante da teoria da conspiração segundo a qual a Apple desbloqueia tudo o que o FBI pede e depois aparece em público a fingir que defende os seus clientes), o que está em causa é a estratégia que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos montou nos últimos dois anos em resposta ao reforço da segurança de muitos aparelhos, na ressaca das revelações feitas pelo antigo analista Edward Snowden.
As empresas de tecnologia como a Apple, o Facebook ou a Google, e as operadoras de telecomunicações como a Verizon e a AT&T sempre ajudaram as autoridades em investigações de casos de terrorismo e de muitos outros tipos de criminalidade. Mas essa ajuda era prestada por ordem de um tribunal especialmente criado para esse efeito ainda na década de 1970, cujas decisões foram mantidas em segredo até 2013, o ano em que foram revelados inúmeros programas de espionagem em larga escala da Agência de Segurança Nacional norte-americana.
Desde então, as maiores empresas de tecnologia e o governo federal dos Estados Unidos têm tentado criar uma base comum de entendimento, para equilibrar a necessidade de investigar ao máximo suspeitas de ataques terroristas e os direitos de privacidade dos cidadãos — afinal, uma das principais promessas que são feitas aos consumidores quando compram um aparelho como um smartphone ou um tablet.
Mas esse diálogo nunca foi pacífico, e a Apple tornou-se na primeira grande empresa a reforçar a segurança dos seus celulares e tablets, quando apresentou o sistema operativo iOS8, em 2014. Mais do que dificultar a vida a quem tenta entrar num dos seus produtos, a ideia é dificultar cada vez mais a vida aos próprios criadores desses produtos, para que seja inconsequente tentar obrigar as empresas a colaborarem mesmo quando consideram não haver motivos para isso.
"Por outras palavras, os agentes federais podem vencer esta batalha em relação a este celular, mas estão a perder a guerra porque os sistemas dos smartphones estão a mudar para uma tecnologia que não permite à Apple e a outras empresas descodificarem os celulares", disse ao site Ars Technica o antigo juiz e atual professor de Direito na University of North Texas, Brian Owsley, quando a Apple contestou o pedido do FBI no caso de Nova Iorque, em outubro do ano passado. "É apenas uma questão de tempo até que quase todos os celulares tenham um sistema que não pode ser descodificado", disse o mesmo especialista.
A tecnologia ainda não chegou aí — e é impossível prever se algum dia chegará, devido à eterna batalha entre quem reforça a segurança e quem trabalha para derrubá-la —, mas a verdade é que os iPhones mais recentes, como os modelos que têm um botão de reconhecimento de impressões digitais, não são propriamente aparelhos que qualquer adolescente consiga desbloquear no seu quarto.
No caso de Nova Iorque, na decisão que foi favorável à Apple (embora passível de recurso), o celular do traficante Jun Feng é um iPhone 5S (um dos mais recentes), mas o sistema operativo é o mais antigo iOS7, anterior ao reforço da segurança anunciado pela Apple em 2014. Ainda assim, é apenas mais um dos vários casos que o FBI tem levado a tribunal para tentar forçar a empresa a desbloquear celulares — de acordo com a polícia federal, a Apple colaborou em 70 ocasiões, e só começou a contestar esses pedidos quando o caso de Nova Iorque foi tornado público.
O próprio juiz James Orenstein deu uma espécie de puxão de orelhas aos advogados da Apple, revelando a complexidade da discussão pública destes casos: "Aparentemente, vocês não tomaram nenhuma das medidas que estão à vossa disposição em 70 outras ocasiões." Na semana passada, numa entrevista ao canal ABC News sobre o caso de San Bernardino, o patrão da Apple, Tim Cook, não negou que poderia ter ajudado o FBI em segredo: "Não posso fazer comentários sobre a estratégia do FBI. Eles optaram por fazer o que fizeram, e optaram por fazê-lo publicamente. Neste momento, já que isto está a ser discutido publicamente, temos de defender princípios", disse Cook.
Apesar de parecer que a decisão do juiz de Nova Iorque dá força à posição da Apple no caso de San Bernardino, a verdade é que não foi estabelecido nenhum precedente, embora o peso da opinião pública seja sempre um fator a ter em conta. "De um ponto de vista técnico e jurídico, não tem nenhum efeito nos tribunais distritais da Califórnia. Mas isto vai ser visto pela opinião pública como uma vitória do lobby da privacidade e uma derrota do governo nessa batalha", disse ao New York Times o advogado Eric Berg, antigo quadro do Departamento da Justiça norte-americano.




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