Juiz de Nova Iorque dá primeira vitória à Apple contra o FBI — empresa
ganha um caso em tribunal num momento em que enfrenta uma batalha dura
contra as autoridades americanas
A batalha que está a decorrer nos tribunais norte-americanos entre a
Apple e o FBI conheceu esta semana um importante desenvolvimento, que à
primeira vista parece beneficiar a posição da empresa de tecnologia.
Numa decisão inédita, um juiz de Nova Iorque recusou um pedido para que a
Apple ajude a polícia federal a derrubar o sistema de segurança do
iPhone de um traficante de droga, num caso menos mediático mas
semelhante ao que envolve o celular de um dos terroristas que mataram 14
pessoas no condado de San Bernardino, na Califórnia.
Numa decisão explicada em 50 páginas, o juiz James Orenstein, conhecido
pelas suas posições públicas a favor dos direitos de privacidade, não se
limita a rejeitar o pedido do FBI. Em várias passagens chega a insinuar
que o governo federal norte-americano poderia acabar por impor um
estado totalitário sem qualquer proteção para os cidadãos, ao basear o
seu pedido numa lei aprovada em 1789, conhecida como All Writs Act, que
basicamente diz que os tribunais podem agir para fazer cumprir ordens
que não estejam previstas na legislação em vigor.
Na sua resposta, o juiz considerou que invocar essa lei com 227 anos
para obrigar uma empresa privada como a Apple a colaborar na
investigação de um crime em que não teve qualquer intervenção direta é
"ridículo", e que aprovar o pedido do FBI e do Departamento de Justiça
poria em causa "a proteção mais geral contra a tirania, que segundo os
pais fundadores exigia uma cuidada separação dos poderes
governamentais".
Em termos gerais, o juiz disse que o governo dos Estados Unidos não pode
invocar uma lei que tem como objetivo colmatar um vazio legal porque
nem sequer existe qualquer vazio legal — em 1994, o Congresso aprovou a
lei Communications Assistance for Law Enforcement Act, que abrange
operadoras de telecomunicações mas deixa de fora empresas de "serviços
de informação" como a Apple. Para o juiz James Orenstein, seria
inconstitucional que os tribunais se sobrepusessem ao Congresso no seu
poder legislativo, pelo que esta confusão terá de ser desfeita em
Washington.
Numa das passagens da decisão, o juiz deixou a ideia (defendida pela
Apple) de que a intenção do governo federal não é apenas desbloquear um
iPhone mas sim estabelecer um precedente para poder ter cobertura legal
sempre que exija às empresas de tecnologia que obedeçam a todos os seus
pedidos — o problema, diz o juiz, é que a lei de 1789 não serve de
argumento, já que o Congresso tem deliberadamente deixado de fora
empresas como a Apple da obrigatoriedade de cumprirem todas as ordens do
governo em termos de investigações criminais.
Um momento decisivo — Mais do que a discussão sobre se a Apple
consegue ou não consegue aceder às mensagens e às fotografias de um
iPhone que está bloqueado com um código definido pelo seu utilizador (ou
a sua variante da teoria da conspiração segundo a qual a Apple
desbloqueia tudo o que o FBI pede e depois aparece em público a fingir
que defende os seus clientes), o que está em causa é a estratégia que o
Departamento de Justiça dos Estados Unidos montou nos últimos dois anos
em resposta ao reforço da segurança de muitos aparelhos, na ressaca das
revelações feitas pelo antigo analista Edward Snowden.
As empresas de tecnologia como a Apple, o Facebook ou a Google, e as
operadoras de telecomunicações como a Verizon e a AT&T sempre
ajudaram as autoridades em investigações de casos de terrorismo e de
muitos outros tipos de criminalidade. Mas essa ajuda era prestada por
ordem de um tribunal especialmente criado para esse efeito ainda na
década de 1970, cujas decisões foram mantidas em segredo até 2013, o ano
em que foram revelados inúmeros programas de espionagem em larga escala
da Agência de Segurança Nacional norte-americana.
Desde então, as maiores empresas de tecnologia e o governo federal dos
Estados Unidos têm tentado criar uma base comum de entendimento, para
equilibrar a necessidade de investigar ao máximo suspeitas de ataques
terroristas e os direitos de privacidade dos cidadãos — afinal, uma das
principais promessas que são feitas aos consumidores quando compram um
aparelho como um smartphone ou um tablet.
Mas esse diálogo nunca foi pacífico, e a Apple tornou-se na primeira
grande empresa a reforçar a segurança dos seus celulares e tablets,
quando apresentou o sistema operativo iOS8, em 2014. Mais do que
dificultar a vida a quem tenta entrar num dos seus produtos, a ideia é
dificultar cada vez mais a vida aos próprios criadores desses produtos,
para que seja inconsequente tentar obrigar as empresas a colaborarem
mesmo quando consideram não haver motivos para isso.
"Por outras palavras, os agentes federais podem vencer esta batalha em
relação a este celular, mas estão a perder a guerra porque os sistemas
dos smartphones estão a mudar para uma tecnologia que não permite à
Apple e a outras empresas descodificarem os celulares", disse ao site
Ars Technica o antigo juiz e atual professor de Direito na University of
North Texas, Brian Owsley, quando a Apple contestou o pedido do FBI no
caso de Nova Iorque, em outubro do ano passado. "É apenas uma questão de
tempo até que quase todos os celulares tenham um sistema que não pode
ser descodificado", disse o mesmo especialista.
A tecnologia ainda não chegou aí — e é impossível prever se algum dia
chegará, devido à eterna batalha entre quem reforça a segurança e quem
trabalha para derrubá-la —, mas a verdade é que os iPhones mais
recentes, como os modelos que têm um botão de reconhecimento de
impressões digitais, não são propriamente aparelhos que qualquer
adolescente consiga desbloquear no seu quarto.
No caso de Nova Iorque, na decisão que foi favorável à Apple (embora
passível de recurso), o celular do traficante Jun Feng é um iPhone 5S
(um dos mais recentes), mas o sistema operativo é o mais antigo iOS7,
anterior ao reforço da segurança anunciado pela Apple em 2014. Ainda
assim, é apenas mais um dos vários casos que o FBI tem levado a tribunal
para tentar forçar a empresa a desbloquear celulares — de acordo com a
polícia federal, a Apple colaborou em 70 ocasiões, e só começou a
contestar esses pedidos quando o caso de Nova Iorque foi tornado
público.
O próprio juiz James Orenstein deu uma espécie de puxão de orelhas aos
advogados da Apple, revelando a complexidade da discussão pública destes
casos: "Aparentemente, vocês não tomaram nenhuma das medidas que estão à
vossa disposição em 70 outras ocasiões." Na semana passada, numa
entrevista ao canal ABC News sobre o caso de San Bernardino, o patrão da
Apple, Tim Cook, não negou que poderia ter ajudado o FBI em segredo:
"Não posso fazer comentários sobre a estratégia do FBI. Eles optaram por
fazer o que fizeram, e optaram por fazê-lo publicamente. Neste momento,
já que isto está a ser discutido publicamente, temos de defender
princípios", disse Cook.
Apesar de parecer que a decisão do juiz de Nova Iorque dá força à
posição da Apple no caso de San Bernardino, a verdade é que não foi
estabelecido nenhum precedente, embora o peso da opinião pública seja
sempre um fator a ter em conta. "De um ponto de vista técnico e
jurídico, não tem nenhum efeito nos tribunais distritais da Califórnia.
Mas isto vai ser visto pela opinião pública como uma vitória do lobby da
privacidade e uma derrota do governo nessa batalha", disse ao New York
Times o advogado Eric Berg, antigo quadro do Departamento da Justiça
norte-americano.
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