quarta-feira, 2 de março de 2016


Crise anestesiou o Brasil

O brasileiro pode estar se acostumando com seu drama. No Brasil de hoje, basta abrir um jornal, uma janela, uma geladeira ou qualquer fresta para dar de cara com a crise. A Lava Jato exibe o pus no fim do túnel. A recessão congestiona a trilha rumo ao olho da rua. E a inflação faz sobrar mês no fim do salário. Porém …
É como se o país estivesse na UTI, mas anestesiado. A vida cotidiana numa nação submetida à perversão perpétua acaba ganhando contornos de anormal normalidade. As ruas voltaram para casa. Estão sendo intimadas a roncar novamente no dia 13 de março. Mas parecem hesitar. Os primeiros atos de impaciência não surtiram efeito. Quando soube que o heroi da resistência da oposição era Eduardo Cunha, o asfalto foi dormir. Acordou sem culpa, virou o rosto e foi cuidar do seu feijão com arroz.
Nunca antes na história do país uma crise foi tão televisionada. A roubalheira, o desemprego e a carestia não transcorrem num cofre remoto, numa empresa desconhecida ou num supermercado distante. Os fenômenos acontecem, em cores vivas, na sala de estar de todos os brasileiros que escolhem não virar o rosto. O descalabro virou mais uma novela. A diferença é que é mais difícil distinguir mocinhos de bandidos.
A novela atual tem um roteiro de terror. Mas é, essencialmente, um reencontro do brasileiro com a vocação da política para o mal — agora em versão revista e ampliada. Durante anos o país assiste, em capítulos diários, entre comerciais de sabão e inseticida, à mistura da roubalheira com a ineficiência. A propaganda é enganosa. A mancha não sai. E os insetos se multiplicam.
A longo prazo, estaremos todos mortos. A curto prazo, se você consegue manter a cabeça no lugar, provavelmente já virou o rosto. Terceirizou a reação ao juiz Sérgio Moro e à força-tarefa da Lava Jato. E foi cuidar do seu feijão com arroz. Muitos ainda tentam ver o lado bom das coisas. Mesmo que seja preciso procurar um pouco.

Não dá para imaginar os executivos da OAS e da Odebrecht, pés sobre a mesa, copo de uísque na mão, charuto entre os dedos, calculando quanto da rapina na Petrobras caberia ao Lula.
A maioria dos brasileiros acha que houve toma-lá-dá-cá.
Os governos do PT azeitaram negócios para as construtoras e, em troca, essas empresas beneficiaram Lula com reformas no tríplex do Guarujá
e no sítio de Atibaia.

Luís Inácio é um homem convencido de sua missão divina e dos privilégios que ela lhe concede. Os empreiteiros e o primeiro-amigo José Carlos Bumlai são apenas escudeiros providenciais, versões pós-modernas de Sancho Pança. Todos com as algibeiras recheadas com verbas do BNDES e dos cofres de estatais. O papel dos escudeiros é o de livrar Lula dos cuidados banais, como a conta das reformas do sítio e do tríplex, a montagem das cozinhas planejadas, a troca do assoalho, a instalação do elevador privativo …
Na festa de aniversário do PT, Lula disse que anda de “saco cheio” com os inimigos, com a imprensa e com os procuradores e magistrados que se curvam para as manchetes. Natural que Lula se sinta injustiçado, acossado não pela indignação moral da sociedade, mas pela mesquinhez das pessoas, pela incapacidade geral de reconhecer que tudo que lhe caía no colo, viesse de onde viesse, não era mais do que o merecido. Que diabos, ele saiu de Garanhuns para dar dinheiro do BNDES aos ricos e dignidade aos pobres! Isso já o distinguia como um cidadão especial, portanto merecedor de favores excepcionais.
No STF, a defesa de Lula pediu a suspensão das investigações sobre o tríplex e o sítio. Os advogados reiteraram que o apartamento não pertence a Lula. Quanto ao sítio, registrado em nome de dois sócios de Lulinha, alega-se que foi comprado por iniciativa de um velho amigo, Jacó Bittar, para que o ex-presidente da República pudesse “acomodar” os objetos que ganhou do “povo brasileiro”. Como as instalações eram precárias, o primeiro-amigo Bumlai ofereceu-se para reformá-lo. Ouvido, o advogado de Bumlai levou o pé atrás: “Só se a Odebrecht for propriedade de Bumlai, o que não me consta.''
Seja como for, julgar Lula pela generosidade com que foi tratado por amigos e congêneres seria julgá-lo como um presidente qualquer. E Lula foi eleito duas vezes com a promessa de que não seria um presidente qualquer. Lula passaria pelo Planalto como a “alma viva mais honesta” que Lula já conheceu. Tem todo o direito de estar de “saco cheio”. Seus eleitores votaram nele porque queriam a diferença. Agora, reclamam da diferença. Dizem que a OAS, a Odebrecht, o Bumlai, o Jacó Bittar, os sócios do Lulinha não faziam parte da diferença. Queriam um Messias. Mas com horário comercial e limite de saque.
Lula seria um espertalhão que engana todo mundo? Os amigos comercializam sua influência no governo, enriquecem à base de propinas e dividem o proveito com o ex-presidente?
Lula, reivindica para si um figurino de idealista incompreendido. Vira protagonista de inquéritos graças às más-companhias e à campanha de perseguição. Um final realista? A autoestima nacional resistiria a um enredo simplório, em que que tudo não passasse de uma vigarice banal?

Tornou-se muito fácil identificar um petista numa roda de políticos.
Ele será sempre o que estiver falando mal de Dilma com maior estridência. Reunido no Rio de Janeiro, o diretório nacional do PT caprichou no oportunismo. Criticou duramente a ruína em que se encontra assentada a administração Dilma. E pregou a ressurreição da política econômica de Lula. Esqueceu um detalhes: o PT ajudou a produzir os escombros.
O partido fez o pior o melhor que pôde.

O petismo tem saudades da era Lula porque foi no reinado dele que o PT tornou-se uma máquina coletora de dinheiro público. Foi uma fase em que o velho lema do ‘rouba mas faz’, piscando num letreiro invisível ao fundo, fornecia a imunidade preventiva para um sistema de conveniências em que o suposto proveito substituía a ética. Hoje, a roubalheira exposta pela Lava Jato fulminou a ética. E a estagflação fez sumir a falsa noção de proveito.
É nesse contexto que o PT traz à luz o seu Plano Nacional de Emergência, um programa econômico desconectado da realidade. Aprovado sob aplausos generalizados, o texto sugere que os juros sejam reduzidos na marra, propõe o escancaramento das arcas já falidas e prega o uso das reservas cambiais para financiar obras públicas.
O PT informa que, neste ano de eleições municipais, a coisa terá que ir na base do vai ou racha. Com o apoio de Lula, o partido critica o ajuste fiscal que não deixou Joaquim Levy executar. E ignora que Lula inaugurou o seu reinado, em 2003, produzindo superávits de caixa de dar inveja nos liberais tucanos. Coisas do passado.
Hoje, reduzido à condição de organização partidária com fins lucrativos, o Partido dos Trabalhadores, 100% financiado pelo déficit público, virou a principal evidência de que o poder longevo pode levar qualquer agremiação a atingir a perfeição da ineficiência impudente. Com os ideais dissolvidos em corrupção, o PT dedica-se a desfazer o que ele mesmo fez. É um caso raro de autodissolução.




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