Integrantes do Ministério da
Cultura podem ter facilitado o esquema de fraudes à Lei Rouanet,
segundo a Polícia Federal. A Operação Boca Livre, que investiga o
desvio de R$ 180 milhões de recursos federais em projetos culturais,
foi deflagrada na manhã de terça-feira (28.jun.2016).
"Houve no mínimo uma falha de fiscalização por parte do MinC", disse
Rodrigo de Campos Costa, delegado regional de combate ao crime crime
organizado, durante coletiva realizada na manhã de terça-feira
(28.jun.2016) na Superintendência da Lapa da Polícia Federal, na
zona oeste de São Paulo.
Policiais federais e servidores da Controladoria Geral da União
cumprem 14 mandados de prisão temporária e 37 mandados de busca e
apreensão em São Paulo, Rio de Janeiro e no Distrito Federal. Eles
foram expedidos pela 3ª Vara Federal Criminal em São Paulo.
Entre os alvos de busca está o Grupo Bellini Cultural, que atua há
20 anos no mercado e aparece como o principal operador do esquema.
De acordo com investigadores, Antonio Carlos Belini Amorim usou
recursos públicos para fins pessoas, entre eles o de para pagar
despesas do casamento de um familiar. A festa de luxo aconteceu na
praia Jurerê Internacional, em Florianópolis. Ele e a mulher foram
detidos na operação, que também apreendeu uma BMW na casa do casal.
Também são citados o escritório de advocacia Demarest e as empresas
Scania, KPMG, Roldão, Intermédica, Laboratório Cristalia, Lojas Cem,
Cecil e Nycomed Produtos Farmacêuticos — essas empresas teriam sido
as patrocinadoras dos projetos que são investigados no esquema
comandado pela Bellini.
Segundo a Polícia Federal, o grupo fraudava a Rouanet desde 2001,
durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Na época, o ministro
era Francisco Weffort. Desde então, a pasta foi ocupada por outros
cinco nomes: Gilberto Gil, Juca Ferreira, Ana de Hollanda, Marta
Suplicy e Marcelo Calero
Todos os 14 mandados de prisão expedidos na manhã de terça-feira
(28.jun.2016) foram feitos contra integrantes do grupo Bellini. Já
os 37 mandados de busca e apreensão de documentos abarcaram também o
Ministério da Cultura.
Com a investigação sob sigilo, a Polícia Federal sequer citou os
nomes dos envolvidos no esquema ou das empresas durante a coletiva
de imprensa. Quando questionado sobre qual projeto cultural embasou
o casamento, por exemplo, o delegado disse que não poderia informar.
COMO O GRUPO ATUAVA — Segundo as investigações da Polícia Federal, o
grupo Bellini Cultural propunha projetos culturais junto ao
Ministério da Cultura e, com a autorização para captar recursos,
procurava a iniciativa privada. As fraudes, então, ocorriam de
diversas maneiras, como a inexecução de projetos, superfaturamento,
apresentação de notas fiscais relativas a serviços/produtos
fictícios, projetos simulados e duplicados, além da promoção de
contrapartidas ilícitas às incentivadoras".
A investigação constatou que eventos corporativos, shows com
artistas famosos em festas privadas para grandes empresas, livros
institucionais, além do casamento, foram custeados com recursos
públicos.
O grupo teria chegado a produzir, por exemplo, livros com duas capas
diferentes (uma para o patrocinador e outra para a prestação de
contas), entre outros desvios.
Boa parte dos projetos que receberam autorização do MinC para captar
recursos tinha valor muito aquém do que o efetivamente prestado em
notas fiscais. Já as empresas patrocinadoras ganhavam duplamente:
com a dedução fiscal e com eventuais contrapartidas oferecidas pelo
grupo Bellini.
Segundo a Polícia Federal, as investigações prosseguirão para apurar
a suposta participação de membros do Ministério da Cultura, além de
outros delitos que possam ter sido cometidos dentro desse mesmo
esquema.
Pouco antes da coletiva de imprensa, o ministro da Justiça do
governo interino, Alexandre de Moraes, que estava no local para
falar de novo laboratório da PF, se disse indignado com o esquema.
"Não é possível que tanto dinheiro assim num largo tempo no país
tenha sido desviado sem que os mecanismos internos tivessem
detectado isso."
SEM FISCALIZAÇÃO — A Polícia Federal investiga fraudes em 250 contratos
sobre a Lei Rouanet que não passaram pela fiscalização do Ministério da
Cultura.
A Operação Boca Livre mostra que até dinheiro liberado oficialmente para
eventos infantis e difusão de atividades indígenas foi desviado para
custear gastos com a contratação de orquestras para festas de fim de ano
de empresas.
“Essas distorções foram identificadas ao longo da investigação, isso
está muito bem materializado nos autos”, declarou o delegado Rodrigo de
Campos Costa, da Delegacia Regional da PF de Combate e Investigação
contra o Crime Organizado.
A PF identificou fraudes ‘grosseiras’ — projetos duplicados, copiados.
“Beira mais de 250 projetos maculados por irregularidades”, disse o
delegado. “A investigação mostrou que eles não foram fiscalizados. A
razão vamos determinar nessa segunda fase do inquérito, a partir da
análise do material apreendido e dos depoimentos.”
A Operação Boca Livre indica que o grupo que supostamente promovia os
eventos captava os recursos ‘com facilitações’ no âmbito do Ministério
da Cultura.
“O Ministério não só propiciava as condições ideais para a aprovação
desses projetos forjados como também exercia uma fiscalização pífia ou
nenhuma de uma forma dolosa para que esses projetos plagiados, copiados,
repetidos, não fossem identificados como tais”, esclareceu a
procuradora da República Karen Lousie Kahn, que integra a força-tarefa
da Operação Boca Livre.
A procuradora reiterou que as empresas ‘se
beneficiavam com a isenção, além do superfaturamento’.
GRUPO BELLINI — Principal alvo da operação Boca Livre, deflagrada na
manhã de terça-feira (28.jun.2016) pela Polícia Federal, o Grupo
Bellini Cultural já captou R$ 80,6 milhões via Lei Rouanet. A ação
investiga desvio de R$ 180 milhões de recursos federais em projetos
culturais aprovados junto ao Ministério da Cultura com benefícios de
isenção fiscal.
A reportagem teve acesso a uma lista parcial com 88 projetos que a
Polícia Federal deve analisar. Desses, 23 foram feitos pelas cinco
empresas do grupo. Os valores captados somam R$ 11,9 milhões.
Irregularidades nos projetos realizados pelas empresas de Antônio
Carlos Bellini Amorim já eram conhecidas pelo MinC há cinco anos, de
acordo com despacho do MinC, datado de 30 de julho de 2015.
Em 2011, segundo o documento, o Ministério Público Federal
encaminhou ao ministério denúncias de uso irregular de verba pública
contra o empresário. A partir disso, o MinC constatou que, entre as
práticas irregulares, estão a apresentação de fotos e documentos
fraudados para comprovar realização de evento ou produção de livro.
Em 2013, o ministério inabilitou as empresas, que não mais poderiam
captar pela Lei Rouanet.
Bellini tentou acordo com o MinC entre fevereiro e abril de 2015:
propôs realizar os projetos para os quais recebeu valores da Rouanet
e, em contrapartida, poderia voltar a receber verbas de isenção
fiscal.
Em julho do ano passado, a Advocacia-Geral da União sugeriu o
indeferimento do acordo. O MinC acatou esta decisão.
PRESTAÇÃO DE CONTAS DE PROJETOS DA ROUANET — O Ministério da Cultura
precisará de pouco menos de 19 anos para terminar a análise de
prestações de contas de projetos aprovados na Rouanet apenas nos 20
primeiros anos de existência da lei.
É o que sugere um relatório de gestão do MinC preparado na véspera
da saída do então ministro Juca Ferreira, em maio. De acordo com o
documento interno a que a reportagem teve acesso, há 12.109 projetos
no passivo da Rouanet.
São propostas aprovadas pelo MinC entre 1992 e 2011 e que não
tiveram suas contas examinadas naquele período. Do total, 8.007
(66,12%) ainda não foram analisadas, enquanto outras 2.642 (21,82%)
seguem em análise, sem conclusão até o momento.
O problema do passivo foi constatado pelo TCU (Tribunal de Contas da
União) em 2011. O órgão apontou, entre outras falhas, volume de
aprovação de projetos incompatível com a capacidade do ministério e
alto estoque de processos sem análise conclusiva. Por isso,
determinou que fosse criada uma força-tarefa para eliminar o
passivo.
O MinC, em 2013, contratou temporariamente 114 servidores para
analisar os documentos. Segundo os cálculos do ministério na época,
eles seriam capazes de concluir 3.660 processos por ano. Entretanto,
o documento mostra que, nos 132 primeiros dias de 2016, somente 156
dos 8.163 projetos que fecharam 2015 sem fiscalização mudaram de
status para "em análise" ou "arquivados".
Isso significa, em média, condução ou conclusão de 1,18 prestação de
conta por dia. Em anos anteriores, as médias diárias foram de 0,49
processo (2013), 1,4 processo (2014) e 2,3 processos (2015).
Na toada atual, serão necessários 18 anos e sete meses para encerrar
o trabalho.
Segundo o Salic (Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura,
gerido pelo MinC), no período a que se refere o passivo — entre os
anos de 1992 e 2011 —, foram aprovados na Lei Rouanet 34.521
projetos, cujos valores de captação somados totalizam R$ 11,7
bilhões.
O MinC não respondeu a reportagem sobre o valor do passivo em reais.
Por meio de sua assessoria, afirmou apenas que "o número de
processos analisados não reflete o rendimento da equipe de
pareceristas, pois processos que já estavam arquivados podem ser
reabertos, caso solicitado pelos órgãos de controle ou por outros
motivos que ensejem uma nova análise dos autos".
Em nota da assessoria, o MinC ressaltou ainda que uma portaria
publicada neste ano atualizou o sistema de prestação de contas dos
projetos incentivados, "sem prejuízo da transparência e do rigor da
fiscalização exercido pelos órgãos de controle e pelo próprio
Ministério da Cultura".
A portaria em questão amplia o limite de dispensa de análise de
prestações de contas estabelecida por outra, publicada dois anos
antes.
Na portaria de 2014, instituiu-se que, para facilitar o trabalho,
projetos com captação até R$ 350 mil estavam dispensados de análise
financeira, desde que não existisse indício de aplicação irregular
de verbas por parte dos proponentes, demanda do controle externo ou
interno, ou denúncia junto ao MinC.
Em 2016, a nova portaria ampliou o limite da dispensa para R$ 600
mil, além de instituir análise simplificada de prestações de contas
de projetos com captação entre R$ 600 mil e R$ 2 milhões.
A reportagem questionou o MinC sobre quantos projetos se
beneficiariam com o aumento no teto do valor de dispensa, bem como
os critérios da análise simplificada. O ministério não respondeu à
solicitação.
O CASAMENTO INVESTIGADO — Uma festa luxuosa para 120 convidados, na badalada praia de Jurerê
Internacional (SC), com show de sertanejo famoso foi paga com recursos
públicos da Lei Rouanet, segundo aponta investigação da Polícia Federal.
O casamento de Felipe Amorim e Caroline Monteiro, apurado na operação
Boca Livre, deflagrada na terça-feira (28.jun.2016), aconteceu à
beira-mar em 22 de abril no 300 Cosmo Beach Club, que, na internet, é
descrito como uma "balada chique em ambiente contemporâneo com cozinha
fina". O local cobra em média R$ 300 por convidado no aluguel para
festas.
A atração musical foi o sertanejo Leo Rodriguez, que interpreta hits
como "Bara Bará Bere Berê", "Vai No Cavalinho" e "Gordinho da Saveiro".
Ele cobra entre R$ 50 mil e R$ 70 mil para cantar nesse tipo de evento. O
empresário do músico afirmou que não tinha conhecimento sobre a forma
como a festa foi financiada, e que o contrato foi firmado como em
qualquer outro evento.
Imagens publicadas por convidados em redes sociais mostram comemorações
que antecederam a festa e as preparações dos noivos e padrinhos para o
matrimônio.
De acordo com a investigação da PF, o casal, que mora em São Paulo, tem
parentesco com Antonio Carlos Bellini Amorim, detido na operação Boca
Livre, que investiga desvio de R$ 180 milhões de recursos federais em
projetos culturais aprovados junto ao Ministério da Cultura com
benefícios de isenção fiscal, previstos na Lei Rouanet.
Um vídeo do casamento foi anexado ao inquérito. A polícia não detalhou
como o recurso da Lei Rouanet foi usado para pagar a festa.