quarta-feira, 25 de junho de 2014


“Eu não sou contra a Copa no Brasil, mas houve exagero nas sedes”, afirma FHC
Em entrevista exclusiva à FORBES Brasil, ex-presidente abre o jogo e fala sobre política e vida pessoal

Fernando  Henrique  Cardoso

Aos 82 anos e visivelmente mais magro, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, presidente da República por dois mandatos consecutivos (1995-1999 e 1999-2003) e presidente de honra do PSDB, pensa no futuro enquanto admira a privilegiada vista de São Paulo a partir dos janelões de sua ampla sala na Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC), localizada na Rua Formosa, bem em frente à Praça Ramos e cercada por ícones da metrópole, como o Viaduto do Chá, o prédio da antiga Light e o imponente Teatro Municipal. “A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”, escreveu Albert Einstein. A frase deu a tônica à entrevista de 1h30 que FHC concedeu à FORBES Brasil.
A imagem do centro velho de São Paulo faz com que o presidente fale do passado com nostalgia. “Tenho saudade de quando isso aqui era mais vibrante, um local onde a vida intelectual pulsava com a Faculdade de Filosofia, a Biblioteca Municipal, os cafés, a Livraria Francesa e o Clube dos Artistas. Isso aqui era a minha vida na São Paulo dos anos 40 e 50”, conta o político natural do Rio de Janeiro.
Hoje, o octagenário presidente vive com a agenda cheia de viagens, compromissos, jantares e encontros como o The Elders – grupo independente criado em 2007 por Nelson Mandela e composto por ex-líderes globais, com o intuito de discutir a paz e os direitos humanos. Nomes como Kofi Annan, Jimmy Carter, Desmond Tutu, Ernesto Zedillo, além de Fernando Henrique Cardoso fazem parte do dream team que se encontrará em alguns meses em Moscou, na Rússia. Toda pompa e circunstância em torno do nome FHC, “o pai do Real”, caem por água abaixo quando o próprio revela a novidade imposta pelos filhos e netos. “Agora deram para me proibir de dirigir, mas eu continuo dirigindo um Honda Fit pequenino”, conta, entre risos. Com a saúde boa, apesar de um problema de diverticulite que o deixou chateado nos últimos tempos, FHC é de uma lucidez e de uma razão ímpares.
Durante a entrevista, “o pai do Plano Real” (que completa 20 anos em 2014) falou sobre os enormes desafios que o próximo governante do país enfrentará a partir de 2015, “seja ele quem for”, relutou inicialmente às investidas da reportagem em opinar sobre o governo, mas acabou criticando o PT por ser marqueteiro demais. “Está faltando sinceridade”, afirmou. Admitiu que o presidente Lula teve seus méritos, mas também o alfinetou ao dizer que “seu maior erro é pensar que ele começou a história do Brasil”.
Alertas também foram feitos durante a conversa, a exemplo “do papel abstrato do Estado no país”, especialmente nas mãos da presidente Dilma, cuja inabilidade como comunicadora serviu para agravar o problema. Sobre o crescimento pífio da economia, deu a entender que a origem está no governo “que pensa deter a mágica do crescimento” e na sua estratégia de abrir o crédito público enormemente. Na sua opinião, o governo está agindo como “barata tonta” ao tentar conter a alta da inflação.
FHC também lamentou pelo fato de o Congresso “perder muito a sua centralidade, tornando-se uma casa de despacho de interesses.” Seu candidato natural, como não poderia deixar de ser, é Aécio Neves. Mas, durante a entrevista, Fernando Henrique deixou claro que Eduardo Campos é um homem preparado. Ou seja, uma clara demonstração de que haverá uma costura de acordos políticos em caso de segundo turno nas eleições presidenciais. “E haverá segundo turno.”
Mas e o próprio FHC, alguma chance de retornar à política nos próximos anos? “Só se eu fosse insensato”, brincou. Sensatez, aliás, parece ser uma das virtudes do presidente ao revelar seu grande projeto para a posteridade. Sociólogo, professor, pesquisador e autor de dezenas de livros como A Arte da Política, que se encontra em sua sétima edição e contabiliza mais de 100 mil exemplares vendidos, trabalha agora em um material que não pretende publicar em vida. “Nem poderia. Lá eu falo mal de muitos amigos”, revela em tom bem-humorado.
Quando foi presidente, durante os dois mandatos, FHC registrou por meio de gravações de áudio a sua rotina. Um hábito noturno entre o governante e seu gravador. Momentos importantes da história e muitos relatos de bastidores ficaram entre quatro paredes e, hoje, encontram-se armazenados na internet. “O conteúdo que tenho gravado deve dar em torno de umas 20 mil páginas”, revela.
O presidente revê, neste momento, todo o material. Sua vontade é deixar o conteúdo pronto para “quem quiser publicá-lo depois que eu me for.” “Se não queres que ninguém saiba, não o faças”, diz o provérbio chinês. Certamente há muitas coisas que FHC deseja que os brasileiros saibam, mas ele não pode contar. Ainda. Abaixo, os principais trechos da entrevista de FHC à FORBES Brasil:

FORBES Brasil: O senhor está visivelmente mais magro. Está se cuidando mais que de costume?
Fernando Henrique Cardoso: Não (risos). Nada de muito diferente do que fiz a vida toda. Eu não sou de abusar muito de comida nem de bebida, faço minha ginástica e levo a vida normal.
FB: Mas não está mais saudável agora do que antes?
FHC: Pelo contrário. Andei tempos atrás chateado com problemas de diverticulite e, talvez por isso, tenha feito um pouco de dieta.
FB: Mas emagreceu um pouco?
FHC: Mais ou menos, não muito. Eu nunca malhei muito. Faço musculação. Antigamente eu fazia natação. Agora é mais musculação, mais do que qualquer coisa.
FB: O senhor se exercita em casa mesmo?
FHC: Tem lá uma academia e faço com personal trainer. Tenho 82 anos, tenho que me cuidar, cuidar do físico.
FB: Mas o senhor está muito bem.
FHC: Por fora (risos).
FB: Bem, como o senhor mesmo disse, está com 82 anos. Presidente, como enxerga o seu futuro?
FHC: Primeiro é uma surpresa eu ter vivido tanto tempo e ter chegado a esta idade saudável e com energia. Eu trabalho como sempre, viajo muito, escrevo muito, falo muito, é uma coisa positiva. Quando eu nasci (em 1931), a esperança de vida não era para tão longe. Então sou privilegiado. Por outro lado, para quem viveu tanto tempo e viu as coisas mudarem tanto, é preciso acreditar que a vida pode melhorar sempre. Às vezes pioram. Há momentos de dificuldade e não se deve perder a esperança. Eu nasci em um Brasil que não se compara com o de hoje. Era um Brasil sem perspectivas para uma boa parte da população, que não se integrava ao mundo, com um número gigantesco de analfabetos e metade da população que não usava calçado.
FB: Isso inclusive no Rio de Janeiro e em São Paulo?
FHC: No Rio havia muita gente com tamancos por conta dos portugueses. Agora usamos Havaianas. Há certo progresso (risos). É mais barato também. O Brasil mudou enormemente. Depois da Segunda Grande Guerra, vários surtos de renovação ocorreram. Foi quando o Brasil passou a se industrializar para valer, viveu a migração rural-urbana. A população se multiplicou por quatro. Foi uma transformação violenta e rápida.
FB: Mas esse tipo de mudança foi global, não?
FHC: Sim, o mundo todo mudou. Mas, comparativamente, ganhamos algumas posições e conseguimos avançar. É uma sensação que dá esperança. Por outro lado, como já vivi muito tempo, também sei que há momentos de pioras e isso depende de fatores globais, nacionais e, até certo ponto, de liderança. Eu passei pelo Getúlio ditador, pelo Getúlio democrata, pela Constituição de 46, pelo Golpe de 64, pelas Diretas Já, pela Nova República. Enfim, vários momentos. Nunca houve, que eu me recorde, um momento de tanta liberdade como agora no Brasil.
FB: E com muitas manifestações...
FHC: Protesto faz parte da liberdade. E também porque a sociedade sempre recoloca problemas. Nós melhoramos muito, mas quando há melhorias, depois se quer mais. Os últimos protestos que estamos assistindo são isso. As pessoas querem qualidade, padrão Fifa, e questionam a razão para se gastar tanto dinheiro com a Copa quando não se tem saúde, escola, segurança. Os problemas não vão parar, nunca param. Eles se deslocam de patamar, principalmente depois da estabilização da economia, do aumento do salário mínimo e de outras melhorias que vieram com isso tudo.
FB: Aproveitando que o senhor falou de Copa, muita gente protestou contra a realização do evento esportivo no Brasil e criticou a construção dos estádios chamados de “elefantes brancos”. Diante deste cenário de críticas, o senhor é contra ou a favor da Copa?
FHC: Eu não posso ser contra a Copa, primeiro porque o Brasil gosta de futebol. Segundo porque é uma oportunidade para o país. Eu acho que houve um pouco de descuido em entender que isso aqui é um país continental, e fazer a Copa em 12 cidades implica uma logística complicada. Talvez não precisássemos dessa complicação. Daí o elefante branco, pois vão fazer estádios em regiões onde você não tem utilidade para os estádios. Houve uma estratégia de Brasil grande, um exagero.
FB: Se fosse na sua gestão, a Copa ocorreria em um número reduzido de cidades?
FHC: Eu tentei fazer a Copa. Nós pedimos quando fui presidente. Fui lá com o Pelé, mas perdemos a competição. O Brasil, na época, não tinha toda essa atratividade. Portanto, eu não posso ser contra. Tinha, talvez, que calcular melhor.
FB: E o senhor planeja ir para a abertura ou pelo menos para a final?
FHC: Olha, eu não sei. Do jeito que as coisas andam complicadas em termos de transporte, eu acho que vou ver é pela televisão.
FB: Conversando com bancos de investimento e empresários, o clima de pessimismo é grande. Estamos realmente numa situação complicada?
FHC: Os mercados, sobretudo os financeiros, sempre exageram. Nunca foi tão bom e nem é tão mau. A “The Economist” simbolizou isso com o Cristo levantando voo e, depois, com o Cristo quebrado. A verdade é que o país nunca levantou tanto voo nem está tão quebrado. Tudo foi muito exagerado. É da lógica dos mercados. Dito isso, há problemas. A dívida interna cresceu muito fortemente, os gastos fiscais estão crescendo assustadoramente e a balança comercial já não responde como no passado. Compramos mais do que vendemos. A balança total de contas é de US$ 80 bilhões negativos. Há sinais preocupantes. Daí essa ideia de que pode haver um downgrade nas agências de risco e de investimentos.
FB: Qual a origem desses problemas?
FHC: O problema é que precisa ter um pouco de equilíbrio nas coisas. O governo ficou com a sensação de que ele tem a mágica do crescimento nas mãos, de que ele pode fazer o crescimento sozinho, que é só dar mais crédito público e levar o tesouro a financiar o BNDES. Este, por sua vez, financia empresas com imensa transferência de renda. Vivemos um momento no qual os mercados percebem que a política oficial está frouxa.
FB: Como o senhor avalia o PIB aquém das expectativas e as dificuldades do ministro da Fazenda em acertar suas previsões?
FHC: Há certa incompatibilidade entre a realidade e o discurso. O discurso é sempre de otimismo exagerado. Você liga a televisão, vê os jornais e escuta no rádio o Brasil oficial, o Brasil maravilha. É muita publicidade, muito recurso, tudo bem feito. E a vida não é tão boa assim. Não é que ela seja ruim, mas é um choque, uma ducha de água fria. Quando o ministro da Fazenda fala, você pensa: “Meu Deus do céu, este país não tem problemas”. E as pessoas sabem que não é verdade. Falta uma linguagem mais sincera.
FB: Por algumas vezes, muitas publicações internacionais e o próprio empresariado pediram a troca do ministro Guido Mantega...
FHC: É coisa grave.
FB: E a presidente não acatou...
FHC: Eu não sei se a questão é mudar o ministro, eu acho que é mais do que isso.
FB: É mudar a presidente?
FHC: É mudar o estilo de governo, o modo de governar. Não quero fazer críticas que possam parecer fáceis, mas a máquina pública brasileira está muito pouco eficiente. A governança não está boa. Não é o governo, é a estrutura do Estado. Nós temos 39 ministérios e isso não faz sentido. É muito. Não creio que a presidente tenha capacidade física de se encontrar com os ministros. Há um desarranjo e esse desarranjo leva o país à sensação de que está na hora de mudar. Não se sabe também mudar para quê. Nesse momento, o próprio governo vai querer se fantasiar de mudancista e a oposição fará o mesmo.
FB: Falando especificamente da política econômica, o governo não está conseguindo reduzir a inflação, apesar do aumento da taxa de juros e da renúncia fiscal de alguns setores da economia.
FHC: O que geralmente produz uma situação inflacionária é o desequilíbrio muito grave entre a receita e a despesa. É o que está acontecendo. Aí você aumenta o imposto e, consequentemente, a receita. Só que chega um ponto que isso não se sustenta mais, até porque as pessoas se cansam. Diminuir gasto é sempre mais difícil, há reclamações. No momento da aflição, opta-se por não reduzir custos e por fazer com que a economia cresça na marra, aliviando a carga fiscal para certos setores. O que acontece? Dá distorções. Tenta-se segurar a inflação e não aumentar o preço da gasolina. Aí você mata o etanol e prejudica o outro lado. Nós vivemos um momento de barata tonta. O Banco Central, nessa hora, aumenta os juros. Mas, sozinho, ele não segura a inflação. Tem que haver uma combinação entre o Banco Central e a política fiscal.
FB: Qual a solução?
FHC: Conversar com a população ao invés de se fechar. Não dá para impor e dizer “minha vontade é lei”. Isso aqui virou Cabo Canaveral, todo dia se lança um programa novo. Tem problema de saúde? Vamos trazer médicos de Cuba. Eu trouxe médicos e ninguém fala disso. A falta de médicos é um problema antigo que não se resolve só com isso. Mas errado não é trazer médicos de Cuba, mas não submetê-los às regras locais, como a análise do diploma. A forma como isso se fez também causou revolta entre os médicos e trouxe uma sensação esquisita porque você paga ao governo de Cuba e não aos médicos. Tem que olhar com atenção porque, no fim, são médicos ligados a um sistema político. O Brasil tem uma proximidade histórica com Cuba. O último exemplo foi a visita, em janeiro, da presidente Dilma ao país para a inauguração do Porto de Mariel, que teve financiamento de US$ 682 milhões por parte do BNDES.
Não sou contra investimento. Eu mesmo como presidente já gerei investimento da Petrobras para procurar petróleo lá, como faria em qualquer lugar do mundo. Eu acho também que o bloqueio de Cuba está errado. O que ocorre, contudo, é que fizeram um investimento muito grande em um porto novo, sigiloso, com financiamento basicamente brasileiro. Como disse o Aécio Neves ironizando um pouco, a maior obra de Dilma foi um porto em Cuba e não no Nordeste. O sigilo não se justifica. Qual a razão para não se ter acesso à informação? Pode ser que não tenha nada, mas dá a impressão que tem.
FB: O valor foi bastante alto, não?
FHC: Sim, o valor foi alto. E disseram que se trata do terceiro maior porto da América Latina. Achei um pouco exagerado.(O telefone do instituto toca. O presidente atende. Do outro lado da linha está o humorista cearense Tom Cavalcante. O presidente conversa uns três minutos com ele, passa o número do celular duas vezes e despede-se prometendo um encontro para breve).
FB: O senhor gosta de humor?
FHC: Gosto, mas vou raramente (a espetáculos de humor) porque não tenho tempo.
FB: O senhor o conhece do bairro? (Tom Cavalcante também mora em Higienópolis)
FHC: Eu já o conhecia antes e, hoje, é meu amigo e vizinho de bairro.
FB: Voltando aos desafios, o que o próximo presidente deve esperar?
FHC: O próximo mandato, seja ele de quem for, será difícil. As bombas de retardamento estão postas. Estamos nesse processo de criação de bolhas de pressão na economia, a exemplo da inflação, da taxa de juros, da balança comercial e, como consequência, de uma taxa de crescimento moderada. Quando eu governei, a taxa de crescimento também era baixa, mas mais alta que da América Latina e do mundo. E hoje é o contrário. Estamos atrás da América Latina e do mundo.
FB: Conversando com empresários e bancos de investimentos, percebo que houve uma predileção pelo governo Lula em relação ao governo Dilma. O senhor é da mesma opinião?
FHC: O governo Lula pegou o ciclo de expansão da economia mundial e o governo Dilma pegou a retração. Eu peguei a retração também. Difícil é governar na retração. O Lula governou durante a expansão, foi na onda e não a contrariou. Até porque não precisava. A Dilma não tem mais esta onda. Por outro lado, talvez, o governo Lula, pelo menos enquanto o Antonio Palocci foi ministro, tinha uma sensibilidade maior com as questões reais da economia. Era menos voluntarista que o governo Dilma. Política é navegação. Não tem que ter ponto de vista rígido, mas se adaptar às circunstâncias.
FB: Há problemas, hoje, que parecem ter se originado no seu governo, a exemplo da lei de responsabilidade fiscal, do jeito que foi concebida, se tornou uma camisa de força para municípios e Estados, uma vez que o serviço da dívida é pesadíssimo, face aos juros atuais. Esse mecanismo não poderia ter sido diferente?
FHC: Mas o problema não foi criado por mim, mas pela mudança da situação. São duas coisas: a lei de responsabilidade fiscal é uma lei essencial. Ela evita que os governantes abusem do crédito e deixem a dívida para o sucessor. Era um problema sério que o Brasil tinha. A outra coisa é a dívida que os Estados tinham com os municípios. O que nós fizemos? Essa dívida era enorme. O governo de São Paulo tomava dinheiro de bancos estaduais e prorrogava o pagamento. No final, o banco tinha que englobar a dívida para não quebrar o Estado. Nós acabamos com essa forma de endividamento irresponsável. Como os governos passaram a tomar dinheiro emprestado em outros bancos, a juros de até 7% ao mês, nós juntamos tudo disso e demos um juro moderado para a época. Foi um grande benefício. Agora, como tudo na economia, é preciso fazer ajustes.
FB: Tirando escândalos como o do mensalão, o governo Lula também trouxe melhorias como a ascensão da classe média. O senhor acha que ele só surfou uma onda favorável ou ele também teve méritos?
FHC: Não. Ele teve méritos. Ele surfou, mas também tomou decisões que foram importantes. Eu acho que o erro do Lula é pensar que ele começou a história do Brasil. Pegue a questão das bolsas, que foram feitas no meu período, com a oposição do PT, que dizia se tratar de medidas neoliberais. Nós fizemos bolsa-escola e bolsa-alimentação. E nós já estávamos agrupando todas tecnicamente, que é uma coisa complicada. Eu tinha dúvidas se politicamente valia a pena ou não, mas estava fazendo.
FB: E como o governo Lula teve continuidade...
FHC: O Lula juntou e ampliou, é positivo. Depois usou aquilo politicamente como se fosse uma propaganda do governo e dele. Uma questão política. Mas o que mais ajudou não foram as bolsas. Tem estudos sobre isso detalhados. O que contribuiu para diminuir a desigualdade e aumentar o bem-estar? O aumento contínuo do salário mínimo, iniciado em 1993. O jornal O Globo fez uma consolidação dos dados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), feita pelo IBGE, onde o aumento do salário real deu um salto de 18% no meu tempo, e 19% no tempo dele.
FB: Muita gente pede seu retorno ao governo, mas pelo visto o senhor não quer mais. Não existe mesmo a menor chance, presidente?
FHC: Não, só se eu fosse insensato. Com essa idade não dá mais. Depois eu acho que cada um tem seu momento da história. Ninguém será salvador da pátria. Uma pátria que depende de um salvador está mal. A pátria depende de instituições e de vários líderes e isso nós temos.
FB: Mas saúde o senhor tem, né?
FHC: Sim, saúde eu tenho. Não precisa a vida inteira você ficar querendo poder, abra espaço, abre alas.
FB: E outros cargos?
FHC: Não, nunca quis. Jamais pensei. Eu acho que não precisa. Para você ter um papel público para o país, não precisa ter cargo, mas ideias, capacidade de expor suas ideias, participar, dar sua opinião.
FB: Nem para síndico de prédio?
FHC: Não, não (risos). O Brasil é um país que precisa de muita gente jovem e com energia, levando adiante os projetos. E tem.
FB: E será que ele (Lula) volta?
FHC: Para a Presidência? Se tiver juízo, não. Eu acho que o candidato do PT é a Dilma, mas não posso falar por ela nem por ele. Mas acho que o Lula tem sabedoria suficiente para não fazer um passo que pode ser tão discutível no futuro dele.
FB: Como o senhor avalia o papel do Estado hoje?
FHC: Eu acho que o Estado ficou muito abstrato no Brasil. Uma pessoa como o Lula, que é comunicador, supre o vazio do Estado. Ou melhor, a falta de comunicação do Estado. Com a presidente Dilma, isso já não aconteceu. É preciso ter uma liderança mais democrática nesse sentido, mais jovem e também mais capacitada a conversar com a população. Porque não tem solução para alguns problemas e nós sabemos quais são. Saneamento, por exemplo, é um tremendo problema no Brasil, assim como a educação. Infraestrutura já é mais fácil, é uma questão de orientação. Não há mais alternativas. É fazer leilões bem feitos e controlar mais. Tem que desinfetar o aparelho do Estado do vírus partidário, da militância partidária.
FB: Privatização é a alternativa?
FHC: Privatização hoje você vê nas estradas, todo mundo sabe que é o melhor sistema. Pode chamar de concessão. Telefonia foi concessão o que eu fiz, não foi privatização, e funcionou. E agora está entupido.
FB: Com muitas reclamações na Anatel...
FHC: Com toda a razão. Tem dificuldade de instalar redes de banda larga, mas ninguém discute mais em estatizar as telecomunicações. Mesma coisa em aeroportos. Mas atrasaram dez anos. As estradas atrasaram dez anos. Agora está tudo aí parado. É preciso compreender o mundo contemporâneo e fazer uso dessa forma eficaz de juntar recurso público ao privado, desde que o governo seja forte o suficiente para fazer contratos bem feitos e vigie sua execução.
FB: Sua opinião acerca da privatização não mudou nada...
FHC: Não, nada. Olha o que aconteceu com a Vale do Rio Doce, que hoje é a segunda maior mineradora do mundo. Veja a Embraer e a telefonia.
FB: E a Petrobras?
FHC: Eu não a privatizei, eu fiz a concorrência, mas eles a transformaram em um instrumento de partidos. Começaram a se meter lá. E, em segundo, resolveram que ela tem que monopolizar muito o pré-sal. E agora tem um problema, uma vez que o valor das ações da Petrobras caiu pela metade. A Eletrobras está falida. Se você for olhar a Caixa Econômica Federal daqui algum um tempo, vai ver o que vai acontecer por causa dos esqueletos que estão lá.
FB: O que fazer agora?
FHC: Agora vamos ter que fazer o que fizemos lá atrás. Vamos reconhecer o que não está reconhecido, balanço malfeito, ver que a dívida é maior. Tentar corrigir, fazer isso de novo.
FB: Falando das próximas eleições, o senhor vê candidatos preparados para assumir este desafiante Brasil?
FHC: Eu acho que o Aécio Neves e o Eduardo Campos estão. O Aécio, sobretudo. Em Minas Gerais, ele governou de uma maneira aberta, sem personalismo. Eu sei que é difícil, porque acho que qualquer um que pegar a situação vai sofrer. Mas só tem jeito de manter apoio, que é conversar muito com o país. Abrir o jogo. Aqui os governos não abrem o jogo, só abrem a propaganda.
FB: Como o senhor encara a era das redes sociais? Vi que tem um iPhone...
FHC: Razoavelmente bem. Estava hoje mesmo vendo como estava minha página no Facebook e são 320 mil fãs. Eu entro por meio desses aparelhinhos (aponta para o iPhone). Não sou como peixe na água nadando, mas eu vou. Tendo uma boia eu chego lá (risos).
FB: Usa e-mail, Skype, tablet?
FHC: Todas essas coisas e Whatsapp.
FB: Quer dizer então que o senhor fala pelo Whatsapp com a namorada?
FHC: Com a namorada não, mas com todo mundo, como os meus filhos e netos.
FB: Como anda o seu relacionamento com ex- líderes globais, a exemplo de Bill Clinton?
FHC: O Clinton é meu amigo até hoje. Ele me escreveu uma carta semana passada. Ele anda entusiasmado, uma vez que a Hillary poderá se ser candidata à Presidência dos Estados Unidos.
FB: E como esses grandes nomes da história enxergam o futuro global? Com entusiasmo ou reticências?
FHC: De forma geral, eles olham positivamente para a recuperação da economia mundial. Há um sentimento de que o pior já passou e que a transformação dos Estados Unidos é grande, que a China está começando a se acertar e que a Europa passou pelo pior. Mas olham com preocupação para os emergentes, a exemplo do Brasil e da Turquia.
FB: Pessoalmente, o que o senhor planeja para o futuro?
FHC: Plano, no sentido específico, eu não tenho. Mas tenho expectativas: primeiro que eu continue gozando de boa saúde. Segundo, que eu tenha tempo para rever meus registros diários do tempo de presidente. E isso dá um trabalho enorme e precisa ter persistência para fazer.
FB: Planeja publicar?
FHC: Não planejo publicar em vida. Vai ficar para depois que eu morrer, porque falo mal de muitos amigos (risos). Pretendo deixar pronto para quando alguém quiser publicar. Esse material foi gravado e regravado. E a minha voz às vezes ficava embrulhada porque eu estava cansado à noite. Fiz isso quase toda noite durante meus dois mandatos. São umas 20 mil páginas, que ainda não se encontram em formato de páginas.
FB: E onde estão essas gravações?
FHC: Na nuvem.

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