Mineração abre cratera, faz pico de montanha sumir e cria 'bairros fantasmas' em região de Minas
A tragédia de proporções ainda incalculáveis que brotou do coração da
região mineradora de Minas Gerais expôs os conflitos e os dilemas da
atividade no Estado.
No último dia 05.nov.2015, cerca de 40 bilhões de litros de lama foram
derramados após o rompimento de uma barragem em Mariana com rejeitos da
mineradora Samarco, presidida por Ricardo Vescovi e controlada pelas
gigantes Vale e a anglo-australiana BHP Billiton.
Paisagem de Mariana, no Quadrilátero Ferrífero de MG, com poeira de minério ao fundo |
O "tsunami", que também tinha lama de uma mina da Vale, presidida por
Murilo Ferreira, destruiu um vilarejo, matou peixes, invadiu o litoral
do Espírito Santo, abalou o abastecimento de água de cidades ao longo do
caminho e deixou ao menos 8 mortos e 11 desaparecidos — há cinco corpos
sem identificação.
Os danos do desastre — ocorrido na cidade mineira que mais arrecadou com
a extração mineral neste ano — já eram registrados, numa escala
imensamente menor, há décadas nas cidades do chamado Quadrilátero
Ferrífero.
Área na região central que concentra a maior parte da população urbana
do Estado, o Quadrilátero engloba a capital, Belo Horizonte, e
municípios cuja razão de ser é a mineração, como Congonhas, Nova Lima,
Itabira e Brumadinho, além de Mariana e Ouro Preto, onde as primeiras
minas foram cavadas no final do século 17.
Marco da Estrada Real no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG) |
Transformações urbanísticas, mudanças inteiras de comunidades, danos
ambientais e o funcionamento de barragens de rejeito em áreas urbanas
são alguns dos eventos conhecidos da população dessas cidades.
Quase sempre, as mudanças foram feitas com a anuência do poder público.
Responsável por 17% do PIB de Minas, a mineração não causa dependência
somente aos governos municipais e estadual: ONGs, projetos ambientais e
até instituições culturais se mantêm graças ao dinheiro das empresas do
setor.
No ano passado, segundo o governo mineiro, o Quadrilátero Ferrífero foi
responsável quase pela metade do minério de ferro exportado pelo Brasil.
Vista de mina da Vale em Itabira (MG) |
"Espero que essa tragédia ajude a repensar o modelo de mineração em
Minas Gerais. Ele deve ser revisto", diz o médico Apolo Heringer Lisboa,
72 anos, um dos fundadores do Projeto Manuelzão, que luta pela defesa da
bacia hidrográfica do rio das Velhas, um dos tantos que cortam o
Quadrilátero.
Como mostrou a tragédia em Mariana, a forte dependência da mineração foi
acompanhada de um afrouxamento dos órgãos de controle e fiscalização do
Estado, que não têm estrutura adequada para acompanhar uma atividade
tão grande e intensa.
Segundo o Ministério Público de Minas Gerais, em toda cidade mineradora
há dezenas de procedimentos abertos pelo órgão que vão de queixas de
moradores a inquéritos sobre eventuais danos ambientais.
O governo de Minas Gerais e seus órgãos ambientais, contudo, nem sequer
têm inventariado os danos causados na região histórica pela mineração,
que financia campanhas eleitorais no Executivo e no Legislativo.
DEPENDÊNCIA — No Parque Serra do Rola-Moça, que se espalha por cidades
como Belo Horizonte, Nova Lima, Brumadinho e Ibirité, a mineração
descontrolada deixou uma cratera numa área que circunda o local.
A exploração da mina foi liberada pelo Estado, nos anos 1990, sem que a
pequena mineradora responsável — que não existe mais — apresentasse um
projeto técnico. Anos depois, a Justiça embargou a área, atualmente
abandonada.
Mina Casa Branca, desativada por estar irregular, no Parque Serra do Rola-Moça |
"Esse é um grande exemplo do que uma mina não pode ser. Não somos contra
a mineração, mas há lugares que nunca poderiam ser liberados para
exploração", diz a ambientalista Maria Dalce Ricas, da AMDA (Associação
Mineira de Defesa do Ambiente).
Em Brumadinho (a 53 km da capital), logo abaixo das montanhas do
Rola-Moça, o empresário Bernardo Paz utilizou as antigas minas de sua
mineradora, a Itaminas, para instalar o Instituto Inhotim, museu
dedicado à arte contemporânea e que se mantém graças à mineração.
A Vale, a maior mineradora do Brasil, é um "patrocinador master" do
instituto de Paz, conforme suas palavras, além de também ser parceira
comercial da Itaminas.
"A mineração é a alma de Minas. O Estado só é o que é por causa do ouro, do diamante e do minério", ressalta.
Paz verbaliza a preocupação de muitos no Estado: a mineração, após o desastre de Mariana, não pode ser demonizada.
Vinte dias após a tragédia, o Legislativo mineiro aprovou projeto de lei
proposto pelo governador Fernando Pimentel (PT) que acelera a concessão
de licenças ambientais a empresas de mineração.
Críticos do projeto, como ambientalistas, apostavam que o clima de
comoção gerado após o desastre em Mariana poderia contribuir para o
texto ser barrado.
Barragem de rejeitos Pontal, em Itabira (MG) |
LABORATÓRIO — Itabira (a 100 km de BH), cidade onde a Vale foi criada
nos anos 1940 pelo então presidente Getúlio Vargas (em 1997, foi
privatizada por FHC), é um laboratório para a exploração do minério de
ferro em larga escala e exemplo das contradições da indústria mineral.
Um dos municípios que mais arrecada impostos da mineração no Estado,
Itabira decretou este ano estado de calamidade financeira. A queda
acentuada do preço da tonelada de minério de ferro e o desaquecimento do
mercado internacional embaraçaram as contas municipais.
Barragem de rejeitos Pontal, vizinha ao bairro Bela Vista, em Itabira |
As mudanças na geografia provocadas pela mineração são visíveis em toda a
cidade. Bairros inteiros já foram removidos. O caso mais recente é o da
Vila Paciência, localizado ao lado da linha ferroviária — por onde é
escoado o minério — e de uma mina da empresa.
As explosões de dinamites na área afetavam a estrutura das casas e
faziam com que pedras de minério fossem arremessadas no bairro.
A empresa disse que a desativação da antiga vizinhança era necessária para "aumentar a área de amortecimento" de suas operações.
Mas o processo de aquisição das casas, que começou em 2007, estancou
sobretudo nos dois últimos anos. De centenas de imóveis, restaram na
Vila Paciência apenas 29, alguns deles isolados em lotes que, agora,
pertencem à Vale.
Vila Paciência, bairro desativado em Itabira; mineração abalava casas da área |
"Vi o bairro nascer e, agora, estou vendo ele morrer", disse a
aposentada Maria das Graças Teixeira, 65 anos, que mora há quase 50 anos
na Vila Paciência. Sua casa está rodeada por lotes vazios. "O pior de
tudo foi perder os vizinhos", conta.
Itabira tem na destruição do pico do Cauê uma das principais marcas da
mineração: o antigo pico que tanto encantava o poeta itabirano Carlos
Drummond de Andrade hoje é uma enorme cratera que vem sendo utilizada
pela Vale justamente como área de rejeito.
Contradição é o que mais se vê nas cidades mineradoras de Minas Gerais.
Em Itabira, ela pode ser personificada na figura do aposentado da Vale
João Batista, 61 anos. Sua casa, onde mora há 15 anos e adquirida graças
ao trabalho na mineradora, está ao lado da barragem do Pontal, uma das
seis existentes na cidade e a primeira de grande porte a ser construída
no Estado. A área tem capacidade para receber mais de 122 bilhões de
litros de lama.
À esquerda pico do Cauê, em Itabira (MG), em 1948; à direita, ao fundo, o mesmo local, hoje aplainado pela mineração |
A empresa afirma que a barragem é segura e que ela passou por
fiscalização do Estado em junho. A mineradora, no entanto, diz que após o
acidente na barragem de Fundão, em Mariana, fez uma "verificação
detalhada das condições estruturais de suas barragens".
A expansão do reservatório de rejeitos do Pontal nos últimos anos mudou o
curso de um córrego, que agora passa a cinco metros do quintal de João
Batista.
"A barragem já superou [em altura] minha casa. Não dá para ficar em paz
quando chove. Eles falam que é muito seguro, mas a natureza, quando
cobra, não avisa que vai cobrar. A insegurança e o medo tomam conta",
afirma.
Ao encontrar a reportagem, nesta semana, Batista terminava de escrever
mais uma carta para a empresa reclamando da situação ao lado de sua
casa. Nunca recebeu resposta, mas ele não se importa.
"Acho que a empresa também não vai responder a essa carta. Mas tudo bem, alguma coisa eu preciso fazer", afirmou.
"A mineração é a alma de Minas. O Estado só é o que é por causa do ouro, do diamante e do minério"
BERNARDO PAZ, empresário e fundador do Inhotim, instituto voltado à arte contemporânea
Na foto, o pico do Cauê, que sumiu da paisagem de Itabira por causa da mineração. Foto do Arquivo Público Mineiro |
O QUADRILÁTERO FERRÍFERO
CENTRO DA MINERAÇÃO — Região originalmente de mata atlântica, engloba a
capital Belo Horizonte e outras cidades de Minas que vivem da mineração,
como Brumadinho, Itabira, Mariana e Ouro Preto. Produz 60% do ferro do
Brasil, segundo o "Global Environmental Change", periódico científico da
área de geociências. Entre 2004 e 2010, de acordo com a publicação, 65%
das minas de ferro do quadrilátero ferrífero cresceram em florestas
nativas.
BALANÇA COMERCIAL
DESVALORIZAÇÃO — Atualmente, as cidades do Quadrilátero Ferrífero sofrem
as consequências da queda do preço do minério de ferro. De janeiro de
2014 a outubro de 2015, o valor para exportação despencou de US$ 101 por
tonelada para US$ 34. A queda é decorrência da crise mundial das
commodities e da desaceleração da China.
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