De Bento Rodrigues, sobraram ruínas e lembranças — a Chernobyl brasileira
O distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, se transformou em ruínas |
Varrido deste mundo, Bento Rodrigues, distrito rural de Mariana, foi
tragado pela tsunami de lama e rejeitos de minério de ferro, no último
dia 05.nov.2015, no maior desastre ambiental da História do Brasil.
Os manacás e tudo mais no povoado do século XVIII se perderam sob o mar
de lama. Bento, como chamavam os moradores, se tornou uma Chernobyl
brasileira. Não há contaminação radioativa, como na cidade ucraniana.
Não há mais nada. Só a onipresente lama, que condenou Bento Rodrigues à
desolação. As vozes por lá agora são as muitas vozes do vento. Ele
assobia pelos destroços, faz um telhado quebrado chacoalhar estridente.
Sacode uma copa de árvore pesada de lama num chiado seco. Bate portas.
Rola pequenos objeto a esmo. Joga no chão fotos de família.
Nas poucas ruas reabertas pelas equipes de resgate perambulam alguns
animais, deixados para trás pelos donos em fuga. Vez por outra, uma
galinha solitária cisca nos destroços. Numa casa com lama até as
janelas, três cachorros magros, um deles com os ossos a espetar a pele,
rosnam e ainda montam guarda. Esperam por donos que não vão voltar. Se
tiverem sorte, serão resgatados por voluntários. Duas marianinhas
(pequenos papagaios) encontraram refúgio num telhado quebrado.
A vida tenta surgir em forma de brotinhos de capim. Mas basta uma chuva
que a lama escorre e os leva embora. Não uma lama de barro comum, mas
densa e viscosa. Passado quase um mês, ela ainda estala, incha e cheira
forte à carniça e substâncias insondáveis. Engole animais. Ameaça
equipes de resgate em piscinas de areia movediça.
As poucas casas ainda de pé, em ruínas e destelhadas, têm as janelas
escancaradas para o vazio. No horizonte, no chão, nas paredes, na copa
das árvores e nas encostas, tudo o que há é lama. Cinza e marrom, em
muitos tons. O cinza vem dos restos do itabirito, a rocha que contém
hematita, de onde se extrai o ferro. O marrom é da quantidade colossal
de rocha estilhaçada em pedaços grandes como ônibus e pequenos como grão
de areia.
Agora, as janelas das poucas casas em pé dão para o vazio |
Poucas famílias conseguiram pegar o que restou |
Cerca de 600 pessoas moravam em Bento Rodrigues |
Sem consolo após tragédia
Em Mariana, a 35 quilômetros do epicentro da tragédia, os sobreviventes de Bento não veem consolo.
Pelas ruas desertas de Bento parecem vagar fantasmas. Não os dos mortos
do antigo cemitério da Igreja de São Bento, arrastada pela tsunami, e
que agora jazem num túmulo sob toneladas de rejeitos de minério. São as
lembranças dos vivos, assombrados pelas perdas de parentes, amigos e da
própria terra. A igreja do padroeiro, São Bento, se foi com a lama e seu
sino badalou por centenas de metros até ser engolido.
No lugar que era dos cerca de 600 moradores de Bento há um caos de
destroços. Um pé de bota é a única coisa no meio da rua principal. Na
escola, se foram as portas e as janelas. Mas os quadros continuam nas
paredes. Da Igreja de São Bento ficaram as ruínas do portal, dois
degraus e um pedaço da base do batistério.
Um dos oficiais bombeiros que trabalham em Bento Rodrigues embarga a voz
ao olhar para caos de restos de roupas, documentos, fotos.
— Estou acostumado com resgates, em ver gente em sofrimento. Mas nunca
imaginei nada dessa dimensão. É uma desolação tão grande que faz pensar
no que importa mesmo na vida. Nas pessoas que amamos — afirma ele.
Ao lado, um motorista de uma empreiteira diz que evita ver fotos do distrito antes da tragédia.
— Isso aqui já é uma coisa pavorosa. Descobrir como era a vida aqui só vai me deixar mais triste.
Fotos são exatamente o que Paula quer ver:
— Queria dar uma última olhada onde ficava minha casa. Poder me despedir da minha terra.
Cristiano teme que a tragédia seja esquecida.
— Ainda há desaparecidos. Ninguém nos informa nada direito. Busco olhar para o futuro. Mas vejo apenas ela, a tragédia, a lama.
A enxurrada de lama acabou com quase tudo |
Ruínas da Escola Municipal Bento Rodrigues. O desastre provocou a morte de 13 pessoas e deixou 10 desaparecidos |
Maioria dos animais morre
Um cavalo branco tentar escapar em desespero da lama em Gesteira, no
município de Barra Longa, em Minas Gerais. Ele empina e afunda
sucessivas vezes. Como centenas de outros animais, se viu aprisionado ao
tentar beber água no rio Gualaxo do Norte tomado pela lama, quase um
mês após o desastre com a barragem da Samarco.
O cavalo consegue escapar, machucado.
Aos muitos animais vitimados no dia do rompimento, se somam outros todos
os dias, já que a lama continua a prender aqueles que chegam perto do
rio. Nas imediações do Gualaxo, vê-se pegadas de uma onça parda e
teme-se pela sorte dela — já que são tão raras
A maioria dos animais presos morre antes que alguém os descubra. Alguns
têm a sorte de serem localizados e, muitas vezes, são tirados com vida.
Eles são levados para um galpão alugado pela Samarco às margens da
rodovia MG-129 e mantido por voluntários.
Um cavalo branco tentar escapar da lama |
Voluntária cuida de um potro retirado da lama por equipes de resgate: muitos animais que sobreviveram à tragédia sofreram mutilações |
'O chão tenta engolir seus pés'
A lama já não se move mais como onda sobre a terra. Mas está viva. E
continua a aterrorizar. Falta na língua portuguesa uma palavra que
defina o monstro fétido feito de restos de minério e água que engolfa
terra e rios por dezenas de quilômetros da Barragem de Fundão até virar
simplesmente lama e se lançar no Rio Doce. Ele recebe o nome de lama.
Mas é só por falta de outro melhor. Assim como é inominável o terror que
se sente ao pisar sobre uma parte supostamente rasa, já nas imediações
de Santa Rita Durão, alguns quilômetros abaixo de Bento Rodrigues.
A sensação é de pisar todo o tempo em falso. Um campo minado de bolsões
ocultos de areia movediça. O chão cede em fração de segundos e tenta
engolir seus pés. Parece relativamente firme, mas em instantes adquire a
consistência de uma gelatina viscosa, que afunda, sinistramente macia.
Quanto mais você se mexe para tentar se soltar, mais ela lhe prende.
Após quase um mês do rompimento da barragem da Samarco, parte do rejeito
tem a aparência de seca por cima. É apenas uma perigosa ilusão. A parte
seca é uma camada muito fina que pode esconder metros de gosma densa de
minério. Mas, nessa gosma de ferro, cada passo é motivo de sofrimento.
Esse tipo de substância pode se comportar tanto quanto sólido como
fluido. É exatamente isso, um monstro instável, uma ameaça sem prazo
para se esgotar. Essa massa arrastou árvores e blocos de rocha imensos
pelo caminho.
Se andar à luz do dia cuidadosamente e apoiado num bastão é um
sofrimento, fica difícil imaginar como deve ter sido tentar fugir na
escuridão da noite sobre a lama mole, que puxa tudo o que toca, em meio a
destroços, sem saber para onde ir.
Natureza tenta reagir ao desastre em uma recuperação lenta |
O desastre ambiental é o maior já registrado no Brasil |
Em Minas, a lama destruiu 900 hectares de flora |
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