Brasil não reconhece foro privilegiado
a filhos de ex-presidentes
a filhos de ex-presidentes
Vladimir Passos de Freitas |
No dia 24 passado, terça-feira, às 23 horas, a Polícia Federal em São
Paulo intimou Luis Cláudio Lula da Silva, filho do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, no escritório de quem foi feita uma busca e
apreensão na segunda-feira, para prestar depoimento em inquérito
policial. A intimação do suspeito deu-se logo após a saída da residência
do pai, que na ocasião comemorava 70 anos de idade.
Segundo consta, trata-se da terceira fase da operação zelotes, que
investiga suposta compra de medidas provisórias editadas com o fim
específico de favorecer montadoras de veículos. Conforme notícia, “a
empresa LFT Marketing Esportivo, do filho caçula de Lula, recebeu R$ 2,4
milhões de Marcondes & Mautoni, suspeita de intermediar a venda de
uma medida provisória aprovada durante o governo do petista que isentou
montadoras de veículos”.
O fato gerou enorme revolta no ex-chefe do Poder Executivo, que atribuiu
a intimação a uma campanha de ódio e criminalização que dirigem contra a
sua pessoa. De sobra, atribuiu ao ministro José Eduardo Cardoso, cuja
saída do Ministério da Justiça defende, ser culpado porque não tem o
controle da Polícia Federal.
O inconformismo do ex-presidente da República merece algumas considerações, via de regra não tratadas na doutrina. Vejamos.
A primeira delas é sobre o horário de a polícia intimar alguém. O Código
de Processo Penal (artigos 370 a 372) e o Código de Processo Civil
(artigos 234 a 242), tratando de ações penais e civis, nada dispõem a
respeito. Se não é vedada a citação em horário noturno, fora do
domicílio, com maior razão não poderá ser proibida a intimação policial.
Da polícia não só se espera como se exige agilidade. Intimações e
citações não são recebidas com alegria, e é comum que oficiais de
Justiça, agentes ou investigadores policiais tenham grande dificuldade
em encontrar as pessoas. É mais fácil ter acesso a um juiz do que a um
CEO de uma grande corporação. Portanto, o uso de estratégias para
cumprir os atos faz parte da ação policial e não constitui abuso de
autoridade.
A segunda é a revolta do ex-presidente contra a investigação dos atos de
seus filhos. Do ponto de vista familiar, a reação é absolutamente
justificável. Pais sofrem com o sofrimento dos filhos. Nesse foco, há
que ser dado o desconto, a revolta é compreensível. No entanto, do ponto
de vista de quem é o investigado — filho de um ex-magistrado supremo da
República —, a reação não tem qualquer justificativa.
No regime democrático, todos são iguais perante a lei. Todos se submetem
a ela e por ela têm garantido o direito de defesa, no momento e local
próprios. Os tempos são outros, empresários de elevado nível social e
econômico, políticos, juízes encontram-se presos, provisória ou
definitivamente. Todos sob a garantia do devido processo legal e não
como sucedia no regime militar, por força de uma prisão de até 60 dias,
decretada pela autoridade que presidia o inquérito policial militar
(artigo 59 do Decreto-Lei 898/69).
A terceira observação diz respeito à cobrança do ministro da Justiça,
que não teria o controle da Polícia Federal. Essa se reveste de
gravidade, porque pressupõe interferência no andamento de investigações.
A Polícia Federal, prevista no artigo 144, inciso I, da Constituição,
tem o dever de apurar eventuais crimes praticados contra a União. Por
força do esforço e do valor de seus membros, muito mais do que por sua
estrutura que é deficitária, vem prestando relevantes serviços ao país. E
é a respeitabilidade por ela conquistada que lhe dá ampla independência
para apurar delitos contra pessoas de elevado nível social, político e
econômico.
Supor que um ministro da Justiça venha a interceder a favor de suspeitos
é acreditar no tráfico de influências como forma de ditar o rumo das
investigações. Tal tipo de atitude certamente submeteria o titular da
pasta da Justiça a uma ação de improbidade administrativa (Lei 8.429/92,
artigo 11, incisos I e II), sem prejuízo de outros reflexos na área
penal (v.g., artigo 319 do Código Penal).
Ademais, o ministro José Eduardo Cardozo é um professor de Direito
(PUC-SP), um acadêmico que faz doutorado na Universidade de Salamanca,
Espanha. Em tempos de radicalização e ódio, é preciso isenção para
observar que o ministro tem se conduzido com correção nas suas complexas
e relevantes funções.
Em entrevista, ele foi claro ao dizer: “Jamais um ministro da Justiça,
num Estado de Direito, deve orientar investigações, dizendo que os
inimigos devem ser atingidos e os amigos poupados”. O fato de ele ter
pedido informações à Policia Federal não altera o quadro, foi mero dever
protocolar.
A quarta observação é que o interesse do ex-presidente deveria ser a
total apuração dos fatos. Com efeito, o sucesso financeiro de seu filho
deve ser-lhe motivo de grande satisfação e orgulho, visto que a maioria
dos jovens está lutando por um emprego de R$ 2 mil. Uma investigação
como a que se realiza pode ser a oportunidade de mostrar a todos que o
sucesso foi alcançado legitimamente. Um atestado oficial de idoneidade.
Finalmente, há que se registrar que o combate aos crimes econômicos está
mudando, no Brasil e no mundo. O Fórum Global sobre Transparência e
Troca de Informações para Fins Tributários, em reunião em Barbados, com
128 países, promete fechar o cerco. Avalia-se que “a coleta de dados
financeiros começará em 1º de janeiro de 2016 em cerca de 50
jurisdições. Para isso, os governos estão mudando as legislações
nacionais para cada banco reportar as contas de todos os clientes não
residentes e, de forma automática, enviar as informações a partir de
2017 aos países de origem desses clientes”.
Fácil é ver que no Brasil os órgãos públicos (DPF, MP, Judiciário,
Receita Federal, Bacen, TCU, CGU e outros) se profissionalizam e
adquirem conhecimentos profundos sobre a matéria. Na mudança de
paradigma, também a advocacia irá se adaptar aos novos tempos, a
prevenção será a tônica, sendo a orientação especializada o melhor
caminho. Nessa linha, as alegações de nulidade não terão o sucesso do
passado. Por sua vez, a sociedade se mobilizará cada vez mais, inclusive
criando observatórios na internet para acompanhar os recursos nos
tribunais, apontando nomes dos relatores, datas, tempo da demora e
resultados dos julgamentos.
Em suma, as instituições estão mudando, funcionando, ninguém está fora
do alcance da lei. Assim, pretender que alguém não seja investigado por
conta de seu parentesco é inadmissível no atual estágio democrático que
atravessa o Brasil.
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