Mentir é pecado
Merval Pereira |
Recebi telefonemas do cardeal Dom Orani Tempesta e da ministra da
Cultura, Marta Suplicy, ambos negando a notícia que dei aqui de que o
governo havia ameaçado retirar da Igreja Católica a guarda da imagem do
Cristo Redentor devido à polêmica proibição do uso da imagem no filme de
José Padilha sobre o Rio, que afinal foi revogada.
Pelo relato dos dois, como a Batalha de Itararé, a guerra que não
aconteceu, também não houve o embate que noticiei. Como confirmei a
informação, antes de publicar, com duas pessoas, disse a eles que
manteria minha versão.
A única explicação que tenho, já que mentir é pecado, é que houve um
tremendo mal-entendido nos momentos mais tensos da negociação para a
liberação do filme.
O fato de o diretor José Padilha ter escrito um artigo em que
questionava a autorização para que a Igreja Católica controle a imagem
do Cristo — “Será que faz sentido a lei permitir que uma organização
religiosa controle a imagem de um monumento que se situa em um local
proeminente na paisagem do Rio de Janeiro e que é considerado um símbolo
da cidade?” — acendeu o sinal de alerta na Cúria Metropolitana.
Assim como a intervenção do prefeito Eduardo Paes, defendendo a
importância do uso da imagem para a propaganda da cidade do Rio de
Janeiro.
Nas muitas reuniões que aconteceram sobre o assunto, o artigo de Padilha
e declarações de outros artistas foram citados como sinais de uma
campanha contra a Igreja, a tal ponto que alguém chegou a sugerir que
fosse comprada uma montanha e para lá se transferisse o monumento do
Corcovado, que fica no Parque da Tijuca, sob jurisdição federal.
Citei esse fato a Dom Orani como prova de que o tema fora abordado nas
reuniões, e ele, rindo muito, admitiu que “nessas reuniões, às vezes
tensas, dizem-se coisas que não valem a pena levar a sério”. É claro que
a sugestão era inviável, mas retrata bem como a ameaça de retaliação
governamental estava no ar.
Dom Orani acha que não há razão para uma retaliação do governo, e lembra
que é a Igreja que cuida do monumento, e já o restaurou por duas vezes
nos últimos anos, tendo conseguido patrocínio privado para tanto.
“Nenhum dinheiro do bondinho e de outras atividades vai para a Igreja,
fica tudo com o Parque (da Tijuca)”.
A ministra Marta Suplicy propôs que ela e Dom Orani dessem uma nota
conjunta, mas o cardeal do Rio preferiu conversar comigo. O relato dos
dois coincide, tanto no tom de amabilidade com que ocorreu a conversa,
quanto nos detalhes, pois ambos se recordam de que a ministra se disse
preocupada com a repercussão internacional da crise.
Como responsável também pelo turismo, havia trabalhado para que a imagem
do Cristo fosse eleita uma das modernas Sete Maravilhas do Mundo, e
essa crise com o filme poderia gerar noticiário negativo.
Perguntei então a Dom Orani se ele ou algum assessor havia recebido,
mesmo de maneira indireta, ameaça de perder o controle da imagem do
Cristo, e ele negou, embora admitisse que “com tantas críticas, tantas
pressões, sempre há um receio de que alguma coisa possa acontecer”. E
acrescentou: “Se em Brasília há algum movimento nesse sentido, nós não
sabemos”.
Por sua vez, a ministra da Cultura se disse preocupada com a situação,
pois surgira na notícia no papel de adversária da Igreja Católica,
quando nada havia acontecido. Ela negou peremptoriamente que exista um
decreto presidencial retirando da Igreja o controle da imagem.
Com outra pessoa do jornal, Marta foi mais longe, afirmando que “estamos
numa disputa política”, que “deveriam existir limites”, e que “isso foi
feito para pôr toda a Igreja Católica contra o governo”. Que seu nome
fora usado sob medida por conta das suas posições.
Não tenho a menor ideia se as posições da ministra deram ares de verdade
a uma suposta ameaça nem se seu papel de representante oficial da
Cultura serviu para reforçar a imagem de que estaria apoiando o
movimento dos artistas em protesto contra o que foi considerado por
muitos, inclusive eu, uma censura artística.
O fato é que a possibilidade de o governo tomar uma atitude no sentido
de retirar ou mesmo reduzir os poderes da Igreja Católica sobre a imagem
do Cristo foi discutida diversas vezes na Cúria Metropolitana nos dias
do impasse sobre o filme de José Padilha.
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