Lembranças do Missouri
Luisa Leme |
Moro em Nova Iorque há quatro anos, mas essa semana é impossível
esquecer a primeira parada nos Estados Unidos: Saint Louis, Missouri. A
cidade é espalhada, meio vazia porque a população fica escondida, cada
grupo em seu bairro, com 300 mil pessoas nos limites municipais e quase
três milhões na região metropolitana.
O Missouri está quase que no meio do nada, com um céu interminável -
propício para quem quer pensar na vida, como eu queria naquele tempo. E
tem pessoas com pouco conhecimento sobre o que existe fora dos Estados
Unidos.
A cidade me tratou muitíssimo bem, não me leve a mal. Eu tenho grandes amigos lá até hoje e volto para visitar de vez em quando.
Mas o que acontece em Ferguson hoje está plantado na sociedade que vive
ali há muito tempo. Uma violência presente em quase todo país, um
preconceito racial escancarado, e um problema com a polícia militar que
extrapola questões locais e está também presente no Brasil, não é?
As comunidades como a de Ferguson no Missouri não são isoladas voluntariamente como as manchetes nos jornais dizem.
Os bairros mais pobres e a periferia que fica no lado leste da cidade,
em East St. Louis, parte de Illinois (98% negra), têm mais da metade da
população abaixo do nível de pobreza do governo federal.
A pobreza e violência são tão grandes por lá que a orientação para quem
chega na cidade é que se você se perder, deve dirigir até achar um
milharal, para garantir que está seguro.
Quem é pobre e negro em St. Louis não frequenta as mesmas universidades
ou os mesmos bairros, não convive com pessoas privilegiadas, não faz
amizades com gente do subúrbio. St. Louis respira tensão racial
diariamente.
A segregação existe e é reforçada pela polícia, pela geografia, pela cultura local.
Subúrbios recusam projetos de transporte público como o metrô por causa
da “criminalidade” e comunidades negras recusam projetos com medo de não
ter onde morar se “melhorarem” o bairro.
Após a eleição presidencial de 2008, quando eu presenciei
afro-americanos chorando de alegria na rua com o resultado, mudaram o
nome da avenida Delmar (que divide a zona norte da cidade,
majoritariamente afro-americana) para Barack Obama Avenue. Mas a cidade
continua a honrar o fórum histórico em seu centro, onde os escravos eram
vendidos para trabalhar nas fazendas da região até 1860.
Hoje, imigrantes precisam apresentar uma carta timbrada e formal do
chefe para comprovar que estão no estado legalmente e somente este
documento garante o seu direito de ter documentação local, como uma
carteira de motorista.
E por isso, Michael Brown é quase como o Amarildo dos Estados Unidos. A
vida dele não vale muito no Missouri. Acabou vítima de uma guarda civil
desnecessariamente armada, e um país que perde toda vez que não enxerga a
sua própria cor.
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