sábado, 2 de maio de 2015


Brasil precisa ir além do Bolsa Família, diz diretor de ONG internacional

Ben Philips - ONG ActionAid - elogiou o esforço do Brasil nos últimos anos 
para tirar milhões de pessoas da pobreza

O Brasil é um exemplo internacional no combate à pobreza, mas precisa ir além do Bolsa Família se quiser avançar na redução da desigualdade por um caminho sustentável, acredita o coordenador de Campanhas e Políticas da ONG ActionAid, Ben Philips. Programas de transferência de renda, ele diz, devem ser apenas parte de um pacote de medidas.
"Os avanços no Brasil não vieram apenas com o Bolsa Família, envolveram um conjunto de políticas públicas. A estratégia deve continuar sendo Bolsa Família, e mais. Mas dizer que o programa é insuficiente, e portanto deve ser abandonado, não faz sentido. É uma piada cruel." (Ben Philips - ONG ActionAid)
A Action Aid é uma organização não governamental internacional que luta contra pobreza, tem programas de patrocínio de crianças e bases operacionais em vários países, incluindo Brasil.
Philips elogiou o esforço do Brasil nos últimos anos e disse que o trabalho que foi feito no país, que tirou 36 milhões de pessoas da pobreza em dez anos, mostra que existem alternativas no combate à desigualdade social. Para ele – e ativistas de outras cinco importantes ONGs internacionais – a concentração de riquezas é o principal entrave na luta por uma sociedade mais justa.
"Depois da ditadura, a democracia voltou mas as velhas elites nunca foram desafiadas. O grande capital, a grande indústria, as oligarquias. Não é uma questão de derrotá-los, mas sim de moderá-los. Criar um teto para a riqueza e um piso para a pobreza. Não é uma revolução, é uma questão de humanidade." (Ben Philips - ONG ActionAid)
Em sua primeira visita ao Brasil, Philips passou cinco dias no Maranhão conhecendo comunidades atendidas por projetos da ONG em que trabalha e outros quatro dias no Rio de Janeiro. Conversou com especialistas, visitou a favela da Maré e disse que a diferença do Brasil em relação a outros lugares do mundo com problemas semelhantes é que "sempre há uma dança para se dançar, uma música para se ouvir, e tudo é feito com muita alegria".
"Acho que a verdadeira identidade das pessoas que moram na favela é infelizmente muitas vezes obscurecida pela imagem preestabelecida. E na verdade são pessoas que batalham para conseguir o melhor para elas e seus filhos. Assim que cheguei na Maré vi uma montanha de lixo. Tudo em um mesmo lugar, ou seja, a coleta é que não foi feita. Se fosse em uma das áreas privilegiadas da cidade, o fato de o lixo não estar sendo coletado como deveria seria tratado diferente." (Ben Philips - ONG ActionAid)
Philips já trabalhou na Children's Society, Save the Children e Oxfam, é mestre em Estudos de Desenvolvimento pela Universidade de Haia e bacharel em História pela Universidade de Oxford.

A Action Aid tem vários programas no Brasil, incluindo este na favela 
Nova Holanda, Rio de Janeiro

Confira abaixo os principais trechos da entrevista:

A redução da desigualdade é um dos focos do seu trabalho. O que você esperava encontrar no Brasil?
Ben Philips - O Brasil é uma inspiração para o resto do mundo. Embora tenha uma longa história de desigualdade, é um dos poucos países que conseguiram reduzir a desigualdade através de políticas públicas nos últimos anos, enquanto em geral o problema só aumenta. Sete entre dez pessoas no mundo vivem em países onde a desigualdade está crescendo. O Brasil é um exemplo de que o governo tem a opção de agir. Se pudermos promover programas de proteção social, aumento do salário mínimo, investimentos em serviços públicos em outras partes do mundo, certamente veríamos uma redução da pobreza. Sei que pessoas aqui são muito críticas em relação ao país – e isso é ótimo, as pessoas precisam exigir mais. É importante não perder os avanços alcançados, pos sabemos que hoje há quem queira reverter esse progresso.

O principal programa de transferência de renda do PT é o Bolsa Família, que costuma ser criticado por muitos sob o argumento de que torna as pessoas dependentes e acomodadas. Como o senhor vê essa crítica?
Philips - Acho que há duas críticas comuns ao Bolsa Família, uma justa e outra injusta. Essa é a injusta: dizer que as pessoas estão ganhando dinheiro de graça, que é uma mesada, que estimula a dependência. Quem diz isso desconhece os efeitos da pobreza e o desespero causado por ela. O Bolsa Família não substitui um emprego, é um complemento de renda.
A crítica que faz sentido é que programas de transferência de renda nunca são suficientes para reduzir a desigualdade de forma sustentável. Eles são uma parte do pacote. Você tem que olhar para toda a equação de riquezas e garantir acesso a terra, melhores salários, ter uma política econômica que promova o emprego. É um pacote de medidas que faz com que as pessoas saiam da pobreza. E o pacote envolve, essencialmente, acesso a educação de qualidade, não apenas fundamental como também no ensino médio.
Os avanços no Brasil não vieram apenas com o Bolsa Família, envolveram um conjunto de políticas públicas. A estratégia deve continuar sendo Bolsa Família, e mais. Mas dizer que o programa é insuficiente, e portanto deve ser abandonado, não faz sentido. É uma piada cruel.


Dos encontros e conversas que o senhor teve nesses nove dias no Brasil, o que mais lhe chamou a atenção?
Philips - Uma das coisas mais interessantes foi que, no diálogo que tive com especialistas, os mesmos problemas ressaltados pelas comunidades que visitamos no Nordeste foram ressaltados. Ambos os grupos comentaram, cada um à sua maneira, que houve progresso na redução da desigualdade, mas que é preciso dar início a uma segunda fase desse processo, na qual é preciso dar acesso a políticas públicas de qualidade e combater a concentração de renda. Para os especialistas com quem conversei, a sociedade civil precisa pressionar o governo para que ele dê continuidade às ações de combate à pobreza.

O Brasil historicamente enfrenta o problema da falta de divisão entre o público e o privado, e o atual escândalo de corrupção da Lava Jato é mais um exemplo de recursos públicos sendo desviados para beneficiar um pequeno grupo privado. Isso não é mais um entrave para a redução da concentração de renda?
Philips - A corrupção é um problema internacional e sempre contrapõe interesses privados e do Estado. Às vezes, grandes grupos privados argumentam que, para evitar corrupção no governo, o Estado precisa encolher. Mas para reduzir a pobreza é necessário ter um Estado forte, que ofereça serviços públicos de qualidade e oportunidades igualitárias. Para evitar a corrupção, você precisa de forças que contrabalanceiem esse poder, precisa de um Judiciário e uma imprensa independentes – e você não tem mídia livre se uma pessoa é dona de todos os jornais e canais, era essa a Itália de (Silvio) Berlusconi – e de uma sociedade civil engajada.
Eu estive agora no Maranhão e vi uma coisa maravilhosa. Uma quebradeira de coco babaçu, que luta para poder coletar os cocos das árvores, é pobre, é avó, é descendente de escravos, em um evento da associação que conseguiu enfim trazer um representante do governo para conversar. E essa mulher gritou com esse homem, com o dedo em riste na cara dele, disse que ele nunca respondia aos convites do grupo de mulheres e leu uma carta para ele com suas reivindicações. Depois disse que ele não poderia deixar a reunião sem antes assinar a carta. Ele assinou e agradeceu à mulher. Em outros lugares do mundo você poderia ser preso por uma atitude dessas. A sociedade civil é forte no Brasil, e isso é um caminho para combater a corrupção.


Os protestos de 2013 no Brasil tiveram a ver com uma crise de representação na política. Hoje muitos não se sentem representados por um Congresso cada vez mais conservador, e com prioridades que muitas vezes atendem aos próprios interesses das bancadas parlamentares. Que papel o Congresso deveria desempenhar no desenvolvimento de boas políticas públicas?
Philips - Acredito que nunca se deve contar com políticos para atender a interesses populares. O poder financeiro vai sempre encontrar uma forma de falar mais alto. Então é preciso ser sempre fazer pressão e se manter atento. Os mecanismos para reduzir a pobreza não são desconhecidos.
Claro que "como fazer" é a questão complicada. Antes do governo Lula não havia existido um esforço comparável de se reduzir a desigualdade no país. Depois da ditadura, a democracia voltou mas as velhas elites nunca foram desafiadas: o grande capital, a grande indústria, as oligarquias. Não é uma questão de derrotá-los, mas sim de moderá-los. Criar um teto para a riqueza e um piso para a pobreza. Não é uma revolução, é uma questão de humanidade.
Houve progresso, mas ainda insuficiente. Agora há um risco de o país regredir, e a sociedade civil precisa se unir para pressionar autoridades a agirem de acordo com sua responsabilidade social.


Você fala em um risco de regredir – quais são os principais riscos?
Philips - Há o risco de que o governo perca a confiança. E então você entra em uma espécie de ciclo. Se o governo não conseguir se ater aos compromissos que assumiu e continuar os avanços feitos no período Lula, os movimentos sociais ficarão descrentes e se afastarão, e os poderes mais tradicionais que vinham perdendo um pouco de força vão exigir mais. Toda vez que o governo fizer uma concessão aos grandes interesses, isso só aumentará o apetite, mas não irá satisfazê-los. E então você entra em um processo em que o governo tenta satisfazer os grupos mais poderosos sem obter sucesso e afasta cada vez mais o povo. Esse é o perigo.

Cinco das principais ONGs do mundo (ActionAid, Greenpeace, Oxfam, Civicus e Aywid) uniram-se para apresentar um documento no Fórum Social Mundial na Tunísia. Qual era a mensagem?
Philips - Firmamos uma agenda comum que trata das principais questões com que trabalhamos: os direitos das mulheres, mudança climática, redução da pobreza, ampliação da democracia. A ameaça imposta pela concentração de renda está entrando no caminho dos esforços para combater a pobreza e de criar qualquer tipo de sociedade decente. É nesse contexto que o Brasil passa a ser tão importante. Porque o Brasil tem sido exemplo de uma alternativa (no combate à pobreza). Podemos dizer que, sim, há jeito, vejam como o Brasil está fazendo.

As metas do milênio são um dos grandes temas deste ano. Você acha que chegamos ao momento da discussão das próximas metas com a sensação de dever cumprido em relação a esta primeira etapa?
Philips - Houve progresso real, porém não no ritmo prometido. As metas do milênio eram para ser um mínimo, não um máximo. Dessa forma, o mundo não ter conseguido atingi-las representa um fracasso. Além disso, as metas foram definidas em relação a médias nacionais, e podem até ter sido atingidas em âmbitos nacionais, mas não foram atingidas pelos grupos mais pobres ou excluídos.

Para alguém que já visitou favelas no mundo todo, quais foram as duas impressões em sua primeira visita à uma favela carioca?
Philips - Já fui a inúmeras favelas pelo mundo e o que uma das coisas que há em comum entre elas é que geralmente são áreas de reputação ruim. Mas o que eu vi na favela da Maré foi pessoas trabalhando em lojas, salões de beleza, cafés, vendendo comida na rua; pessoas tentando ganhar a vida. E, claro, cidadãos voltando de um dia de trabalho na cidade. Acho que a verdadeira identidade das pessoas que moram na favela é infelizmente muitas vezes obscurecida pela imagem preestabelecida. E na verdade são pessoas que batalham para conseguir o melhor para elas e seus filhos. Assim que cheguei na Maré vi uma montanha de lixo. Tudo em um mesmo lugar, ou seja, a coleta é que não foi feita. Se fosse em uma das áreas privilegiadas da cidade, o fato de o lixo não estar sendo coletado como deveria seria tratado diferente.


Nenhum comentário:

Postar um comentário