domingo, 9 de setembro de 2012


Padre Cícero, mil e uma faces de um mito da fé nacional.

Padre  Cícero
Dois milhões de romeiros chegam todo ano a Juazeiro, no Ceará, para prestar tributo a um homem que já foi descrito de mil maneiras: santo, reencarnação de Jesus Cristo, porta-voz das oligarquias, aliado de cangaceiros, ideólogo de políticas sociais, espertalhão que enriqueceu de modo ilícito, semeador de fanatismos, raposa que tirou proveito da ingenuidade popular, curandeiro das ervas.
Cícero Romão Batista (1844-1934), o Padre Cícero (ou Padim Ciço, para os populares), complexa personalidade que resume em sua história os fenômenos da fé exacerbada nos sertões brasileiros.
Cícero foi alvo de um tumultuado processo eclesiástico, que resultou em sua suspensão das ordens sacerdotais e, mais tarde, de um decreto de excomunhão do Santo Ofício, em Roma. À época, ele foi acusado de desobediência e de insubordinação pela alta cúpula do clero. Morreu proscrito pela Igreja, aos 90 anos.

Reabilitação canônica
O bispo italiano Fernando Panico, da Diocese do Crato, afirmou que o papa Bento 16 foi quem pediu a revisão dos fatos de Juazeiro quando ainda era o Cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, e que o Papa prometeu solicitar que apressassem a conclusão do processo de reabilitação histórico-eclesial do Padre Cícero pelo Vaticano.
A reabilitação canônica do Padre Cícero precisa ser compreendida dentro do contexto da "guerra santa" entre católicos e neopentecostais. A Igreja, tardiamente, percebeu que o fenômeno Padre Cícero é forte demais para ser combatido ou esquecido.

Homem forte
Cícero, depois de banido, só então fez da política uma nova espécie de sacerdócio. A partir daí, Cícero torna-se um líder político igualmente polêmico e controverso.
Padre Cícero era um homem forte: foi prefeito, elegeu governadores e teve interlocução com o presidente. Chega a defender militarmente a cidade de Juazeiro, em 1913, e repelir uma força militar de mil homens.
Os que querem ver Cícero como um místico primitivo e caricato cometem uma grave falha histórica. Ele era habilidoso, ladino, sagaz. Por isso sobreviveu a todos os seus inimigos, tanto na política como no clero.

A beata Maria Araújo
O pivô da expulsão de Padre Cícero do sacerdócio foi a beata Maria de Araújo. No dia 1º de março de 1889, Cícero distribuía a comunhão na igreja quando uma das beatas, ao receber a hóstia, revirou os olhos e pareceu entrar em transe. Em sua boca a hóstia sangrava. Tentava conter o sangue, mas este lhe descia pelo braço. Em agosto, Maria de Araújo contaria ter se encontrado com o próprio Cristo. Juazeiro virou uma nova Jerusalém. Os médicos rechaçaram a hipótese de fraude. Não havia lesão da laringe ou pulmão e, mesmo que houvesse, isso teria debilitado Maria.
A insistência na tese do milagre levou Cícero ao confronto.
Mulher, negra e analfabeta. Como o sangue de Cristo poderia se materializar numa criatura dessas?, perguntava-se a Igreja. Mas Maria vertia sangue frente ao próprio comissário do bispo.

A persistência da fé
Quem chega a Juazeiro do Norte, pela primeira vez, talvez perceba ali apenas a notória exploração política, econômica e religiosa do povo sertanejo em nome de Cícero. Essa exploração existe e é um fato inegável. Mas um olhar mais atento também pode detectar outro fenômeno, tão eloquente quanto esse. As romarias e a devoção ao padre que viveu e morreu como um rebelde proscrito do clero se inscrevem em uma lógica que foge à assepsia do rito oficial da Igreja Católica. Quando vista em sua perspectiva histórica, é uma fé insubmissa, indomável, transgressiva, que hoje a cúpula do clero tenta a todo custo absorver, sob pena de deixar à margem do ritual uma verdadeira legião de fiéis, disputados pelas igrejas neopentecostais. Assiste-se hoje, no sertão, a uma verdadeira guerra de poder, quase uma "guerra santa", na qual padres e pastores evangélicos medem forças para atrair avidamente os romeiros e peregrinos.

Fiel ao celibato
Os muitos inimigos de Cícero o acusaram de inúmeras coisas, mas não de ter quebrado os votos de castidade ou o celibato clerical. Mesmo os mais ferrenhos opositores foram obrigados a reconhecer que uma charge publicada à época por um jornal satírico pernambucano, Lanterna Mágica, em que se sugere que Cícero mantinha relações com as beatas havia errado o alvo. Cícero permaneceu fiel ao celibato.

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