Estado demora um tempo médio de 14 anos para leiloar bens apreendidos de traficantes de drogas
Josias de Souza |
Decorridos quase seis anos, a nova lei não saiu do papel. Tornou-se letra morta. O Ministério Público, a quem caberia requerer a realização dos leilões antecipados, não requisita. Os juízes, incumbidos de autorizar as alienações, fingem-se de desentendidos. E o Ministério da Justiça, que teria a responsabilidade de levar os bens ao martelo, declara-se manietado.
A lista de apreensões inclui veículos, embarcações, aeronaves, jóias e imóveis. Estão relacionados em processos que, submetidos ao ritmo de tartaruga manca do Judiciário, levam um tempo médio de oito anos para ser julgados em instância terminativa. Decreta-se, então, o “perdimento dos bens”. Significa dizer que a União está livre para vendê-los.
Cabe a um órgão da pasta da Justiça organizar os leilões. Chama-se Senad (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas). Ali, a alienação dos bens ocorre num prazo médio de seis anos. Um tempo que, somado aos oito anos da fase judicial, resulta numa demora de impressionantes 14 anos entre a apreensão dos bens e sua conversão em dinheiro.
Os dados constam de uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União. A peça foi aprovada pelos ministros do TCU na última quarta-feira (15). Somando-se o relatório (77 páginas) e o voto que anota as conclusões (20), o documento tem 97 folhas. Pode ser lido aqui. Vale o desperdício de um pedaço do feriadão do Carnaval.
Iniciada em maio de 2010, a auditoria do TCU resultou no mais completo e devastador estudo já realizado sobre a política nacional antidrogas. O trabalho foi dividido em duas fases. Numa, varejou-se a engrenagem repressiva do Estado. Noutra, a estrutura montada para prestar assistência aos dependentes de drogas. Ambas apresentam falhas abundantes e resultados escassos.
No trecho que trata da novela da alienação do patrimônio amealhado pela bandidagem, o relatório afirma que os bens são “armazenados e estocados de forma irregular”. Não sofrem “reparos”. Com o passar do tempo, “perdem o valor econômico”. Quando são finalmente vendidos, rendem “arrecadação muitas vezes irrisória”.
Corroído, o dinheiro vai para o Funab (Fundo Nacional Antidrogas). Administrado pela Senad, aquela secretaria que organiza os leilões, esse fundo é, hoje, a principal fonte de financiamento dos programas de combate às drogas. Ou seja: além de impor “prejuízo aos cofres públicos”, na expressão do TCU, a demora na alienação dos bens dos traficantes conspira contra a repressão ao tráfico e o tratamento de suas vítimas.
No momento da realização da auditoria, os arquivos da Senad registravam 7.214 bens com algum valor de mercado. Desse total, apenas 2.889 (40%) dispunham de autorização judicial para a venda. Refinando-se a pesquisa, verificou-se que 663 itens (22%) aguardam há mais de oito anos pela realização do leilão.
Depurando-se um pouco mais os dados, descobriu-se que, desse subtotal de 663 bens, 261 estão na fila do leilão –assombro— há mais de 14 anos. Outros 41 itens esperam por um encontro com o martelo –estupefação— há mais de vinte anos. Em visitas a delegacias da Polícia Federal e de órgãos como a Receita Federal, os auditores do TCU encontraram pátios “abarrotados de veículos apreendidos”.
O inadmissível assume ares de inaceitável quando se lê no relatório do TCU o relato sobre a situação que vigora nas delegacias da Polícia Federal localizadas em áreas de fronteira, onde estão as portas de entrada das drogas no país. O contingente é pequeno, o treinamento é precário e o equipamento é escasso. Falta de tudo –de lanchas a coletes a prova de bala.
Do inaceitável evolui-se para o inacreditável: parte do dinheiro do Funad, o fundo antidrogas para onde são carreados os recursos amealhados nos leilões de bens apreendidos, vem sendo bloqueado pelo governo. Na linguagem da burocracia de Brasília, o bloqueio chama-se “contingenciamento”. O dinheiro está lá, mas a Fazenda impede que seja aplicado.
Nos últimos três anos, o dique reteve cerca de 22% das verbas. O bastante para transformar em propaganda enganosa as ações previstas no Plano de Enfrentamento ao Crack e a outras Drogas. Criado sob Lula, em 2010, o programa foi repaginado sob Dilma Rousseff.
Mencione-se, por eloquente, o quadro de 2010. Tonificado pelo programa anunciado por Lula, o Funab recebeu R$ 130 milhões. Comparando-se com a cifra disponível no ano anterior, houve um salto de notáveis 665%. Beleza. O problema é que, depois de filtrados pelas comportas do “contingenciamento”, os recursos disponíveis nas arcas do fundo caíram para R$ 12,6 milhões.
O TCU endereçou aos órgãos que lidam com o combate às drogas uma série de recomendações. O histórico recente desaconselha o otimismo. Em janeiro de 2010, o Conselho Nacional de Justiça já havia expedido uma recomendação escrita aos magistrados. Pedia que passassem ordenar a alienação antecipada dos bens de criminosos. Coisa prevista na lei editada quatro anos antes.
Uma pesquisa eletrônica feita pelos auditores do TCU revela que os juízes fizeram ouvidos moucos para o CNJ. Responderam ao questionário do tribunal 186 togas que atuam em regiões de fronteira. Nada menos que 95,5% informaram que o deferimento das alienações antecipadas é “muito baixo” ou “baixo”. Quer dizer: embora autorizado por lei e recomendado pelo CNJ o procedimento é solenemente ignorado.
De acordo com os registros oficiais, foram apreendidos 1.666 bens de alto valor desde a promulgação da lei de 2006. Apenas 35 (2,1%) foram a leilão. Se a lei fosse respeitada, todos os bens já teriam sido passados nos cobres. O dinheiro permaneceria no fundo gerido pelo Ministério da Justiça até a conclusão dos processos. Confirmando-se a condenação dos réus, o Estado gastaria a verba sem o inconveniente da depreciação.
Uma parte dos juízes (60%) responsabilizou o Ministério Público pela inação. Alega-se que os procuradores não requisitam a venda antecipada dos bens. O que levou o TCU a recomendar ao Conselho Nacional do Ministério Público que enderece à sua tropa recomendação semelhante à que foi dirigida pelo CNJ aos magistrados, há dois anos. De novo: o histórico desaconselha o otimismo.
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