domingo, 3 de agosto de 2014


Cem anos depois da Primeira Guerra, desafios na economia semelhantes a 2014
Para analistas, não se pode isolar emergentes, como ocorreu com Alemanha

O capacete do soldado foi deixado em 1919 por seu pai sobre o local
onde ele foi enterrado, junto com uma pequena placa.

Alguns dos economistas mais respeitados da cena internacional, entre eles o americano Nouriel Roubini - que ficou conhecido por antecipar a crise financeira de 2008, da qual boa parte das nações ainda tenta se recuperar -, comparam o mundo de 1914, às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial, ao de 2014. Se desde então a economia global deu um salto e o planeta nunca foi tão rico, as semelhanças são inegáveis. Os riscos de um novo conflito bélico como o de cem anos atrás são pequenos, na avaliação de especialistas, mas é preciso aprender com os erros do passado para evitar que os problemas econômicos observados há um século se repitam.
Para o diretor do Instituto de Assuntos Econômicos (IEA, na sigla em inglês), Stephen Davies, a inclusão das economias emergentes no processo decisório do sistema financeiro internacional deve estar, mais do que nunca, presente na agenda dos líderes mundiais. Países como China, Índia, Rússia e Brasil precisam ter voz na construção do novo arcabouço econômico, sob a pena de se reproduzir, um século depois, o equívoco de se isolar a potência em ascensão da época, a Alemanha - um dos fatores que teria tornado a guerra inevitável.
- Em 1914 havia um sistema internacional estável, mas surgiu uma potência imperial que acabou fora dele. Esse foi um dos motivos da guerra. Agora, temos algumas potências em ascensão. Será que o sistema internacional vai ser flexível o bastante para incluí-las? Não se pode deixá-las para trás, como aconteceu com a Alemanha. Espero que tenhamos aprendido as lições do passado - argumenta Davies.
Há alguns anos, os países emergentes pregam a reforma das instituições financeiras criadas após a Segunda Guerra Mundial, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), com o objetivo de reequilibrar o sistema financeiro. Os Estados Unidos, por exemplo, têm um peso maior nas votações que todo o bloco do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) somado.

Líderes do Brics. Vladimir Putin (à esquerda), Narendra Modi,
Dilma Rousseff, Xi Jinping e Jacob Zuma: ascensão dos emergentes

A estabilidade do pré-guerra a que se refere Davies devia-se, em boa medida, ao fato de as economias mundiais estarem atreladas ao ouro - uma commodity física que era estocada pelos países para ser usada como moeda de troca. O sistema, que ficou conhecido como padrão-ouro, vigorou do século XIX até a Primeira Guerra, atravessando um dos períodos áureos da economia mundial, marcado por uma bonança de quase 40 anos de crescimento.
Autor do livro "Saving the City: The great financial crisis of 1914", publicado em novembro do ano passado, Richard Roberts, professor de economia do King's College, afirma que, em comum com o período do pré-guerra, o mundo hoje vem de um longo período de crescimento, onde se observou a globalização dos mercados, que acarretou um intenso fluxo de comércio, investimentos, capitais e pessoas. Segundo Roberts, logo que eclodiu a Primeira Guerra a economia mundial mergulhou no que ele considera uma das cinco maiores crises financeiras da História: 42 das 43 bolsas então existentes fecharam as portas - algumas por meses, outras por anos -, e 50 países decretaram feriado bancário.
Roberts não afasta a possibilidade de uma nova crise profunda, embora descarte outra guerra. Segundo o professor, os diferentes sistemas de câmbio hoje existentes protegem a economia mundial. Mas muitas iniciativas para combater os efeitos da crise financeira de 2008 foram contraditórias e acabaram por criar uma nova regulação do sistema bancário, que ainda não está clara e apresenta riscos para a economia.
- A grande incerteza da economia internacional está na falta de clareza da regulação do sistema bancário - afirma Roberts.
Durante o Fórum Econômico Mundial, no início deste ano, em Davos, Nouriel Roubini listou pelo Twitter alguns dos problemas que o faziam se lembrar de 1914. Entre eles estavam "a reação contra a globalização, a era de ouro das desigualdades, o aumento das tensões geopolíticas". Se a economia ia bem àquela época, isso não era sentido por todos, exatamente como ocorre nos dias de hoje. Enquanto o mundo crescia em torno de 14% entre 1914 e 1918, as economias da Rússia, França, Áustria e Império Otomano registravam retração entre 30% e 40%. A economia alemã encolhia nada menos que 27%.
Não há um cálculo preciso de quanto o Produto Interno Bruto (PIB, conjnto de bens e serviços produzidos) global evoluiu desde então. Dados do Banco Mundial mostram que, somadas, as economias nacionais hoje valem US$ 74 trilhões. Para Davies, do IEA, a economia global hoje é regida por um sistema cada vez mais instável, interconectado, que depende das oscilações de diferentes moedas e de cenários econômicos determinados por governos cuja máquina estatal é cada vez maior, com gastos significativos e dívidas que, muitas vezes, não têm capacidade de rolar. Esta é uma das principais explicações para as sucessivas crises que acometeram o planeta desde a década de 1990, da Ásia à Argentina.
- O grande desafio hoje é criar um sistema monetário estável. Em 1914, os gastos do governo representavam, na média, 10% do seu PIB. Hoje esse percentual saltou para 44% do PIB. Muitos não têm como se manter assim - explica Davies.

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