Moradores tentam resgatar dialetos 'esquecidos' no Sul
Idiomas criados por imigrantes ganham gramática e são ensinados na
escola
Em Serafina Corrêa, na serra gaúcha, lei transformou o talian,
variação do italiano, em língua 'co-oficial'
Em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul, funcionários da
prefeitura são orientados a falar "sorasco" em vez de "churrasco" e
"sinele" no lugar de "chinelo".
Por enquanto, isso ocorre uma vez ao ano: na semana em que se
comemora a emancipação da cidade de 16 mil habitantes. Por enquanto.
Ameaçado de extinção, o talian, uma espécie de variação do italiano,
só agora começa a ter gramática, dicionário e aulas. E a cidade de
Serafina Corrêa, na serra gaúcha, virou um bastião na luta para
preservar esse idioma.
Mas não é a única. Outras comunidades pelo Sul do país também se
mobilizam para manter vivos dialetos europeus hoje quase restritos a
regiões rurais e a idosos.
Em Serafina Corrêa, o talian virou por lei idioma "co-oficial" e é
incentivado das mais diferentes maneiras. Programas de rádio, uma
revista e atividades culturais no idioma tentam manter vivo o
interesse da população pelo dialeto, que foi trazido por imigrantes
há mais de um século e se modificou devido à influência do
português.
Em breve, a prefeitura irá oferecer aulas do idioma nas escolas
municipais.
Os adultos que hoje moram na parte central da cidade pouco usam o
dialeto. E o antigo costume de transmitir o conhecimento do idioma
de geração a geração foi se perdendo nas últimas décadas.
"Eu sei falar tudo e a minha filha me cobra porque não ensinei. Hoje
não tenho mais com quem falar [o talian]", diz Fátima Tecchio, 49.
Em novembro, após receber da cidade um inventário, o Ministério da
Cultura reconheceu o talian como Referência Cultural Brasileira, o
que deu fôlego a entusiastas.
Um deles é a servidora Solange Soccol, 59, que criou cartilhas sobre
o idioma. "Sem a língua, não temos a nossa identidade, nossa
tradição", afirma.
OBSTÁCULOS
O trabalho de resgate do idioma enfrenta dificuldades como a falta
de um modo padronizado de escrever. Como outras línguas de colonos,
o talian é ágrafo, ou seja, se desenvolveu sem escrita.
Outro obstáculo é um trauma coletivo da época da Segunda Guerra
Mundial (1939-45), quando o governo de Getúlio Vargas proibiu
idiomas estrangeiros em território brasileiro. Moradores idosos
relatam que a perseguição bloqueou o uso no dia a dia e desestimulou
o ensino.
"Quem falava em dialeto na escola ganhava castigo", diz Rosalina
Vitalli, 77.
Ela vive em um distrito a 20 km do centro da cidade, onde o talian
ainda é o idioma mais falado. Nesse último reduto do idioma, o
português é chamado de "brasileiro".
Para a moradora Cássia Gollo, 24, os mais jovens têm mais vergonha
de se expressar na língua dos avós. "Parece que têm um pouco de
receio [de falar], que querem ser como os das cidades."
Apesar de Serafina Corrêa ser uma capital informal do talian,
cidades de todo o Sul já receberam encontros anuais, promovidos por
descendentes de italianos, para divulgar a língua.
A professora de ciências sociais Maria Catarina Zanini, da
Universidade Federal de Santa Maria (RS), afirma que o talian surgiu
no Brasil para facilitar a comunicação entre grupos vindos da
Itália.
"Quando saíram de lá, os imigrantes não se entendiam: uns falavam o
dialeto vêneto, outros o cremonese. Então, criaram uma língua."
'SAPATO DE PAU'
Desde 2010, um inventário produzido pelo governo federal busca
catalogar os idiomas falados pelo país. Estima-se que existam mais
de 250, a maioria indígenas.
A 100 km de Serafina Corrêa, na cidade de Westfália, o esforço é
pela preservação de uma variação do alemão chamada de plattdeutsch.
O dialeto tem o apelido de "sapato de pau" devido aos tamancos que
os imigrantes alemães usavam na época da colonização. Voluntários
promovem programas de rádio e oficinas para o ensino da língua, que
também não tem padronização escrita.
O município de Santa Maria do Herval (a 73 km de Porto Alegre) desde
2011 oferece nas escolas aulas de hunsrik, uma língua próxima do
alemão falada por descendentes em vários Estados do país.
Hoje, 14 turmas até a 5ª série aprendem o dialeto. "Isso aumentou a
autoestima da comunidade e a integração entre gerações. Se a língua
não for mantida nas famílias, vai desaparecer", diz a professora
Solange Johann, que coordena o projeto.
SEM IMPOSIÇÃO
Aprendizado não deve ser imposto, diz especialista. Para a doutora em psicologia escolar Elizabete Flory, o resgate de
um idioma ajuda a recuperar raízes e a identidade das comunidades,
mas o envolvimento dos mais jovens não deve ser forçado.
Ensino em escola, porém, pode ampliar interesse. A presença de outro idioma nas escolas é uma saída, pois evita que a
língua fique restrita ao ambiente familiar e faz crescer as chances
de a criança continuar praticando o dialeto por toda a vida.
"Recuperar a língua e fazer voltar a ser algo com valor de
comunicação é um desafio para a comunidade. Se for colocado como
algo imposto, que as crianças não sintam uma ligação, é mais
complicado para fazer vingar."
O professor de letras Cléo Altenhofen, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, diz que é preciso "agilidade" nas medidas para
evitar que os idiomas se percam. "Não adianta esperar cinco ou dez
anos porque já podem ter morrido os últimos falantes."
A universidade mantém um projeto de mapeamento do dialeto hunsrik
pelo Sul e países vizinhos. Ele afirma que as iniciativas de resgate
dos idiomas podem fortalecer o turismo nesses locais.
"Essas línguas possuem uma riqueza que não dá para se ter ideia. São
línguas que, se não tivesse havido o processo de migração, não
existiriam", afirma a professora de ciências sociais Maria Catarina
Zanini.
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