Reincidência - Fraude
Químicos brasileiros são alvo de novas acusações
Químicos brasileiros são alvo de novas acusações
Quatro anos depois de revelado o maior caso de fraude já documentado
envolvendo cientistas brasileiros, vêm à tona novas acusações de má
conduta dirigidas a químicos do país, inclusive um professor que
participara do episódio anterior. Pesquisadores da Universidade Estadual
de Maringá (UEM), no Paraná, e da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) são acusados de reaproveitar as mesmas imagens em várias
publicações, fazendo-as passar por resultados de experimentos feitos com
substâncias químicas diferentes. Dois artigos de autoria do grupo já
foram anulados pelas revistas em que haviam sido publicados, e outros
dois sofreram correções.
A maior parte dos trabalhos sob suspeita tem dois autores em comum:
Angélica Machi Lazarin, professora do Departamento de Química da UEM com
doutorado e pós-doutorado pela Unicamp; e Claudio Airoldi, químico de
72 anos que fez carreira na Unicamp (foi o primeiro doutor em química
formado pela universidade), da qual é hoje professor convidado. Ambos
foram procurados. Airoldi não retornou o pedido de entrevista; Lazarin
escreveu num e-mail que não pode falar neste momento.
Em 2011, onze trabalhos publicados por Airoldi em parceria com seu
ex-aluno Denis Lima Guerra e outros autores foram tirados de circulação
pelos periódicos em que tinham sido publicados – o caso foi relatado na
reportagem “Os alquimistas”,
publicada na piauí 60. As despublicações – retractions, em inglês – são
o recurso das revistas científicas para corrigir a literatura quando
são constatados casos de fraude ou erros de boa fé. Investigações
conduzidas pelas instituições de Airoldi e Guerra (que era professor da
Universidade Federal do Mato Grosso) concluíram que os trabalhos sob
suspeita tinham dados fabricados. Airoldi foi punido com 45 dias de
suspensão, e Guerra foi exonerado no início de 2014.
Em novembro do ano passado, os editores da revista Química Nova,
publicação da Sociedade Brasileira de Química, receberam um e-mail que
lançava suspeitas sobre um artigo publicado ali em julho de 2013 – uma
investigação sobre as propriedades de um composto com possíveis
aplicações biomédicas. O trabalho era assinado por oito pesquisadores da
UEM – inclusive Angélica Lazarin, que aparecia listada como autora
correspondente, responsável por falar em nome do grupo – e por Claudio
Airoldi, que figurava como último autor, posição comumente reservada
para o pesquisador sênior da equipe.
A denúncia enviada aos editores da Química Nova apontava grande
semelhança entre imagens usadas no artigo e algumas publicadas em outros
trabalhos do grupo. As figuras em questão representavam os resultados
de experimentos conduzidos usando difração de raios-X e outros métodos
experimentais. Mas não se trataria de um simples reaproveitamento das
imagens em questão: nos outros trabalhos, elas apareciam representando
experimentos feitos com substâncias químicas distintas.
Montagem aponta semelhanças em imagens de difração de raios-X publicadas em diferentes artigos de químicos brasileiros |
Os editores da revista montaram um comitê de especialistas para analisar
a denúncia. Foram chamados dois editores associados do periódico e um
dos revisores que haviam participado do processo de avaliação do artigo.
Não demorou até que chegassem a uma conclusão, conforme relatou numa
entrevista telefônica a química Susana de Torresi, pesquisadora da USP e
uma das editoras da Química Nova. “Os especialistas constataram que,
efetivamente, a denúncia procedia”, disse ela.
Não é preciso um olhar treinado para notar semelhanças entre as figuras
sob suspeita. Um gráfico representando resultados de difração de raios-X
no artigo da Química Nova, por exemplo, tem a mesma aparência de uma
figura que aparece num trabalho de 2004 publicado na revista Analytica
Chimica Acta e assinado por Angélica Lazarin e Claudio Airoldi. No
trabalho de 2004, porém, a figura deveria representar os resultados de
um experimento feito com um composto diferente. Não foi o único caso: a
investigação apontou o possível reaproveitamento de imagens em pelo
menos oito publicações envolvendo autores do grupo.
Os editores da Química Nova entraram em contato com os autores do artigo
para esclarecer a situação. Segundo o relato de Susana de Torresi, num
primeiro momento eles alegaram se tratar de imagens similares, e depois
reconheceram que eram as mesmas figuras. “Eles expuseram suas razões,
mas consideramos que a defesa não procedia e decidimos retratar o
artigo”, afirmou Torresi. O trabalho foi considerado inválido no fim de novembro, menos de um mês após o recebimento da denúncia.
De acordo com a editora, esta foi a primeira vez em quase 34 anos de
história que a revista Química Nova despublica um artigo. Não teria sido
evidente identificar a possível fraude durante a revisão por pares que
precedeu a publicação do trabalho, um processo em que se assume a boa fé
dos autores. “Esse tipo de coisa é muito difícil de captar no momento
da avaliação, a não ser que você conheça muito por dentro todas as
publicações do grupo”, afirmou Torresi.
Os editores tomaram a iniciativa de comunicar o ocorrido às revistas nas
quais foram publicados os artigos com as imagens sob suspeita, às
agências de fomento responsáveis pelo financiamento do trabalho e às
universidades dos autores. “Já estão correndo processos administrativos
tanto na UEM quanto na Unicamp”, disse Torresi.
O trabalho publicado na Química Nova não foi o único envolvendo os
autores a ter sido tirado de circulação. Em janeiro deste ano, foi
despublicado um artigo que havia saído em 2013 no periódico Open Journal
of Synthesis Theory and Applications, tendo como autores os oito
pesquisadores de Maringá que também assinam o trabalho da Química Nova
(Airoldi não figura entre os autores). “O comitê editorial constatou que
porções substanciais do texto vieram de outros artigos publicados”,
informa a nota de retratação do artigo.
Recentemente, dois trabalhos assinados por Angélica Lazarin e Claudio
Airoldi foram corrigidos para substituir figuras que haviam sido
indevidamente incluídas. Um deles tinha sido publicado em 2005 no
periódico The Journal of Chemical Thermodynamics, e o outro, de 2008,
fora veiculado na Solid State Sciences.
As suspeitas de fraude envolvendo os químicos brasileiros vêm sendo comentadas no PubPeer,
um site colaborativo para o escrutínio da literatura científica. Outras
possíveis ocorrências de imagens repetidas em artigos do grupo vêm
sendo apontadas num tópico dedicado a um artigo de 2004 assinado por
Airoldi, Lazarin e outros seis pesquisadores vinculados à UEM.
Um dos participantes desse fórum é o químico Sylvain Bernès, pesquisador
da Universidade Autônoma de Nuevo León, no México – o único a assinar
suas intervenções naquela discussão. Bernès listou ali cerca de vinte
artigos dos químicos brasileiros nos quais enxergou a suspeita de
reaproveitamento de figuras, além de postar montagens que comparam as
figuras sob suspeita, incluindo a que ilustra esta reportagem.
Procurado, Bernès disse num e-mail que acompanha regularmente discussões
sobre química no PubPeer e tem familiaridade com o objeto de estudo do
grupo brasileiro. Ao tomar conhecimento das suspeitas levantadas contra a
equipe, ele resolveu pesquisar outros trabalhos dos autores num portal
de artigos científicos. Segundo ele, bastou uma busca rápida para
identificar diversas ocorrências de possível duplicação de imagens.
Bernès acredita que, nos próximos meses, mais artigos do grupo devem ser
corrigidos ou despublicados. “O fato que as duplicações [de imagens] se
estendam por um período de mais de dez anos e o fato que elas sejam
numerosas mesmo numa busca aleatória me fazem crer que estamos vendo
apenas a ponta do iceberg”, afirmou.
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