Carnavalização!!!
Beija-Flor — alegoria trouxe policiais militares baleados e cidadãos revoltados com a violência |
As mazelas do Brasil frequentaram o enredo de várias escolas de samba.
Mas uma delas foi mais contundente. A Beija-Flor expôs na Marques de
Sapucaí, no Rio, o flagelo da corrupção e suas consequências sociais. O
desfile foi apoteótico. Mas faltou à Beija-Flor uma ala sobre o patrono
da escola, o contraventor Anísio Abraão David.
Anísio, como é chamado, carrega no prontuário uma sentença de primeira instância: 48 anos de
cadeia por corrupção ativa, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e
contrabando. Está livre graças ao Supremo Tribunal Federal.
Anísio Abrão integra o baronato do jogo do bicho, que dá as cartas nas
escolas de samba há pelo menos cinco décadas. Esse pessoal conquistou
fortuna, poder e prestígio social. Jornalistas, comentaristas e estrelas
do mundo das artes enalteceram na transmissão televisiva o arrojo da
Beija-Flor. Mas ninguém se lembrou de mencionar o rastro pegajoso do
patrono da escola.
Junto com outros barões do jogo, Anísio foi engolfado por uma operação
chamada Furacão, que desbaratou um esquema de compra de policiais e
juízes, para liberar máquinas de caça-níqueis apreendidas pela Receita.
Em 2012, a quadrilha foi condenada em primeira instância. Em 2016, às
vésperas do julgamento na segunda instância, que deveria levar os
criminosos à cadeia, o processo foi suspenso pelo ministro Marco Aurélio
Melo, do Supremo. Em liberdade, o condenado Anísio aprovou o enredo
anticorrupção da Beija-Flor. Uma evidência de que, no Brasil, a
hipocrisia também é uma forma de patriotismo.
Beija-Flor — estudantes dentro de caixões representavam a morte da esperança dentro do enredo |
FUGA DA FOLIA — Bispo licenciado da igreja Universal, o prefeito do Rio
de Janeiro Marcelo Crivella tornou-se protagonista de um paradoxo.
Avesso ao Carnaval, ele governa a cidade conhecida mundialmente como
templo da festa profana. Na campanha, prometeu não bulir no pedaço do
orçamento da prefeitura destinado às escolas de samba. Em 2018, passou
na lâmina metade da verba. Transformado em enredo da Estação Primeira de
Mangueira — “Com dinheiro ou sem, eu brinco o Carnaval” — Crivella
refugiou-se na Europa. Veiculou no Facebook um vídeo gravado na
Alemanha. Nele, diz estar cuidando da segurança do Rio.
Da Alemanha, Crivella e sua comitiva seguirão para a Áustria e a Suécia |
“Estamos trabalhando muito, pegando muita informação para saber o que é
mais moderno em termos de vigilância, em termos de VANT [veículo aéreo
não tripulado], em termos de drone, em termos de informação via
satélite, enfim, o que a gente puder para melhorar a questão da
segurança no Rio de Janeiro”, disse o prefeito carioca Marcelo Crivella no vídeo.
A desculpa de Crivella torna-se alegórica quando se recorda que a
Constituição atribui a responsabilidade pela segurança pública ao
Estado, não ao município. Sobre isso, o prefeito disse coisas
definitivas sem definir muito bem as coisas:
“As pessoas dizem assim: segurança é uma questão do Estado. É sim. Mas
olha, do jeito que o Rio está, precisa de ajuda de todo mundo: governo
federal, governo municipal, governo estadual, Força Nacional de
Segurança, Polícia Rodoviária Federal. Nós todos temos que estar unidos
porque a violência é inaceitável.”
Da Alemanha, Crivella e sua comitiva seguirão para a Áustria e a Suécia.
São negligenciáveis as chances de a excursão resultar em algo produtivo
para o combate à criminalidade no Rio de Janeiro. Assim, o custeio de
viagens organizadas para camuflar a aversão do bispo-prefeito ao
Carnaval entra na crônica do desperdício nacional como mais uma
modalidade do costume de jogar dinheiro público pela janela.
O prefeito carioca Marcelo Crivella é transformado em Judas no desfile
da Mangueira, sobre as palavras: “Prefeito, pecado é não brincar o Carnaval!” |
ESCOLA DE SAMBA UNIDOS DA BARBÁRIE — Se é verdade que o Brasil tornou-se
um país em degradação, o Rio de Janeiro é o cartão-postal da
decomposição. A ex-Cidade Maravilhosa passou da pós-modernidade para a
fase pós-falimentar sem o estágio intermediário de pelo menos algo para
chamar de bons tempos. Neste Carnaval de 2018, o carioca compartilha com
os turistas a sensação de estar no epicentro do insolúvel.
A escola de samba que mais brilha na cidade é a Unidos da Barbárie.
Ninguém sabe com precisão quando começou a desfilar. Mas todos têm
consciência de que sua evolução ainda vai durar muitos carnavais.
O surto de arrastões, assaltos e mortes não é propriamente uma novidade.
Mas há algo de original no Carnaval do pânico: a classe média de
Copacabana e a burguesia de Ipanema e do Leblon, que já não contavam com
a proteção do Estado esculhambado, foram abandonadas também pelo crime
organizado.
Noutros tempos, o Comando Vermelho e seus congêneres tinham o hábito de
conter a bandidagem durante os períodos festivos. Faziam isso não por
boniteza, mas porque a violência prejudicava os negócios da indústria da
droga, a mais próspera do Rio de Janeiro. Com a ruína econômica do
Estado, pivetes e bandidos pés-rapados fugiram ao controle.
Sem o auxílio dos traficantes, as supostas autoridades incumbidas de
prover proteção limitam-se a transferir a responsabilidade para as
potenciais vítimas. Porta-voz da Polícia Militar do Rio, o major Ivan
Blaz orientou os foliões a “não ostentar joias, nem ficar com celular
fazendo selfie no meio da multidão”.
“São recomendações que são repassadas pelas autoridades de segurança no
mundo todo”, prosseguiu o major. “Em Paris ou Nova York, você vai
receber as mesmas recomendações da força policial. É uma realidade
cruel. Pedir que a pessoa não faça selfie, que não registre aquele
momento de festividade, é lamentável. Mas infelizmente é uma realidade
que vivemos.”
Quer dizer: considerando-se que a violência é um dado imutável da
realidade, os órgãos de segurança do Rio, para cumprir adequadamente
suas atribuições, precisam trocar de clientela. Essas pessoas que
brincam o Carnaval na cidade são de péssima qualidade. Poder-se-ia
imaginar que a solução passaria pela importação de foliões mais,
digamos, nova-iorquinos ou parisienses. Mas a bandidagem brasileira não
costuma exigir dos assaltados a apresentação do passaporte.
Nesse contexto, resta enaltecer a escola de samba do mal. Merece dez, nota dez. Por duas razões:
1) Escancarou a miséria administrativa resultante de décadas de
populismos — do chaguismo ao cinismo corrupto de Sergio Cabral, este
carioca de algema.
2) Consolidou a noção de que o Rio de Janeiro é o lugar ideal para fazer algo inteiramente novo. Caos não falta.
Beija-Flor — a violência representada, com cenas de assaltos e vítimas de balas perdidas |
Beija-Flor — alegoria trazia a representação de uma comunidade carente e traficantes |
O SOCORRO HUMANITÁRIO — A crise humanitária provocada pelo êxodo
venezuelano levou o governo federal a fazer por pressão o que deixou de
realizar por precaução. A visita de Michel Temer a Boa Vista, na
segunda-feira (12.fev.2018), ocorre num instante em que já há cerca de
40 mil venezuelanos na capital de Roraima. O Estado pediu socorro. E a
ficha de Brasília, finalmente, caiu. Na expressão do ministro da Defesa,
Raul Jungmann, o governo decidiu “abraçar o problema”.
Durante mais de uma década, o governo brasileiro bateu palmas para a
insensatez bolivariana de Caracas. A economia da Venezuela derreteu. E
os venezuelanos escorrem para os lados como se fossem detritos.
O ministro Raul Jungmann, que acompanhou Temer, já havia visitado Boa
Vista na semana passada. Ele foi às ruas, onde “mora” boa parte dos
refugiados. Perguntou a uma jovem venezuelana: Por que veio? E ela: “Vim
por que não conseguia na Venezuela comida, remédios e emprego.” Simples
assim.
A engrenagem do governo foi mobilizada para atingir três objetivos: o
primeiro é fortalecer a presença federal na fronteira. Não para fechar
as portas, mas para colocar ordem na chegada. O segundo objetivo é fazer
um censo dos venezuelanos. Estima-se que 30% deles têm formação
superior. A terceira meta é distribuir os refugiados entre os Estados,
tentando aproximá-los de oportunidades de trabalho. Não se trata de uma
opção, mas de um imperativo humanitário. E o pesadelo tende a aumentar,
pois a insensatez continua dando as cartas no governo autocrático da
Venezuela. Por ora, a única coisa que diminuiu foi o som dos aplausos
que vinham do Brasil.