STF libera empreiteiros e restaura a anormalidade
O brasileiro sempre foi um povo de pouquíssimos espantos. No país dos
absurdos, o ponto de exclamação deixou de fazer parte dos hábitos
nacionais. Quando se imaginava que o Brasil estava mesmo condenado à
falta de estupefação, o juiz Sérgio Moro horrorizou todo mundo em
novembro de 2014. O magistrado ressuscitou o assombro ao colocar o
baronato da construção civil para dormir nos colchonetes da carceragem
da Polícia Federal, em Curitiba. Com seus mandados de prisão, Moro
transformou a Operação Lava Jato num ponto fora da curva.
Antes que o pasmo fizesse aniversário de cinco meses, a 2ª turma do STF
tratou de puxar o ponto de volta para perto da curva. Em decisão
apertada — três votos contra dois — o Supremo transferiu
nove empreiteiros dos colchonetes do PF’s Inn para os lençóis de linho
egípcio da prisão domiciliar. Restituiu-lhes o conforto às vésperas de
prestarem depoimentos sobre o assalto aos cofres da Petrobras.
Restaurou-se a anormalidade, tão normal no Brasil quanto as escamas no
peixe.
A decisão do STF foi tomada numa sessão em que se julgou um pedido de
habeas corpus formulado pela defesa de Ricardo Pessoa. Trata-se do dono
da UTC, apontado pelos operadores da Lava Jato como coordenador do
cartel que tomou de assalto a Petrobras. Como o mandado que levara
Pessoa à cadeia incluía os nomes de outros oito empreiteiros, o STF
decidiu estender o linho egípcio para os demais.
A Segunda Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) |
Relator do processo, o ministro Teori Zavascki anotou em seu voto que “a
sociedade tem justificadas e sobradas razões para se indignar” com a
petrorroubalheira. Acrescentou que as pessoas têm motivos para “esperar
uma adequada resposta do Estado, no sentido de identificar e punir os
responsáveis.”
Porém, prosseguiu Zavascki, “a sociedade saberá também compreender que a
credibilidade das instituições, especialmente do Poder Judiciário,
somente se fortalecerá na exata medida em que for capaz de manter o
regime de estrito cumprimento da lei, seja na apuração e no julgamento
desses graves delitos, seja na preservação dos princípios
constitucionais da presunção de inocência, do direito a ampla defesa e
do devido processo legal.”
Na opinião de Zavascki, avalizada pelos colegas Gilmar Mendes e Dias
Toffoli, as razões invocadas por Sérgio Moro para ordenar as prisões dos
empreiteiros perderam a razão de ser. Como os executivos afastaram-se
formalmente dos postos que ocupavam nas empresas, não teriam como
reincidir nos crimes.
A ministra Carmen Lúcia, vencida na ilustre companhia do colega Celso de
Mello, decano do STF, contrapôs às teses de Zavaschi um argumento tão
singelo quanto avassalador. “Testemunhas ainda podem ser reinquiridas.
Como não existe mulher quase grávida, não existe instrução [de
inquérito] quase acabada. Quando finalizar a instrução, esse quadro pode
mudar.”
Ante o argumento de Zavascki de que os presos não estavam sendo soltos,
mas transferidos para a prisão domiciliar, Carmen Lúcia recordou que, em
casa, os empreiteiros terão acesso a telefone, internet e a outras
formas de comunicação. Der resto, o fato de os executivos estarem
formalmente afastados das respectivas empresas não impede que continuem
mandando e, sobretudo, desmandando por baixo dos panos.
A lógica linear do raciocínio de Cármen Lúcia não foi capaz de reverter o
placar. Natural. O brasileiro não resistiria a tanto espanto. Ele já
está acostumado com o Brasil da anormalidade — um país em que sempre
existiu a corrupção só de um lado.
A CPI dos Anões do Orçamento, por exemplo, identificou os parlamentares
corruptos. Mas fechou os olhos para os corruptores. A consultoria
fictícia de PC Farias atraiu para as arcas clandestinas de Fernando
Collor o dinheiro de empresários graúdos. Alguns tiveram seus 15
segundos de má fama. Mas nenhum teve de dar muitas explicações. Estava
entendido que aquilo tudo era normal. Era a maneira de fazer negócios.
Só de raro em raro consegue prosperar no Brasil a ideia de que o
corruptor é tão culpado quanto o corrupto. Agora mesmo, sob Dilma
Rousseff, o governo se esforça para retirar as empreiteiras da fogueira.
Alega-se que desonestas são as pessoas, não as empresas. Sustenta-se,
de resto, que a ruína das empreiteiras atrapalha o desenvolvimento do
país e o bom andamento das obras.
Nos autos da Lava Jato, a propina é pecado. Nos hábitos nacionais,
trata-se de uma das mais normais anormalidades da história nacional. No
papelório do processo, Ricardo Pessoa é o chefão do cartel que trocou
contratos na Petrobras por propinas. Na defesa sustentada oralmente da
tribuna do Supremo pelo advogado Alberto Toron, o todo-poderoso do
cartel é apenas um bom marido, um bom pai, um ótimo avô. Uma pessoa cuja
liberdade não oferece o mais remoto risco à sociedade. Sendo assim,
nada mais normal do que restaurar a anormalidade. Os doutores soltam fogos.
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