Estaleiro Rio Grande
Documentos e testemunha mostram que a
presidente Dilma avalizou o contrato de montagem do Estaleiro Rio
Grande, envolvido desde a sua origem em esquemas fraudulentos e por onde
escoaram mais de R$ 100 milhões em propinas para os cofres do PT e
aliados
A Operação Lava Jato já concluiu que, a partir de 2010, pelo Estaleiro
Rio Grande, escoaram propinas de cerca de R$ 100 milhões para os cofres
do PT e aliados. A constatação foi extraída a partir de delações
premiadas, dentre elas a do ex-gerente de Serviços da Petrobras, Pedro
Barusco, e de Gerson Almada, vice-presidente da Engevix. A partir das
próximas semanas, o Ministério Público terá acesso a um outro capítulo
sobre as falcatruas que envolvem o estaleiro e, pela primeira vez, um
documento com a assinatura da presidente Dilma Rousseff será apresentado
aos procuradores que investigam o Petrolão. Trata-se do contrato que
deu início a implementação do Estaleiro Rio Grande, em 2006. Dilma, na
época ministra da Casa Civil, assina como testemunha. Renato Duque,
ex-diretor de Serviços da Petrobras e hoje na cadeia, assina como
interveniente, uma espécie de avalista do negócio.
O documento será entregue aos procuradores por um ex-funcionário da
Petrobras que resolveu colaborar com as investigações, desde que sua
identidade seja preservada. Ele atua há 30 anos no setor de petróleo e
durante 20 anos trabalhou na Petrobras. Além do contrato, essa nova
testemunha vai revelar aos procuradores que desde a sua implementação o
Estaleiro vem sendo usado para desviar recursos públicos e favorecer
empresas privadas a pedido do PT. Na semana passada, a testemunha
antecipou à reportagem tudo o que pretende contar ao Ministério Público.
Disse que o contrato para a implementação do Estaleiro é fruto de uma
“licitação fraudulenta, direcionada a pedido da cúpula do PT para
favorecer a WTorre Engenharia”. Afirmou que, depois de assinado o
contrato, servidores da Petrobras “foram pressionados a aprovar uma
sucessão de aditivos irregulares e a endossarem prestações de contas sem
nenhuma comprovação ou visivelmente superfaturadas”. Um mecanismo que
teria lesado a estatal em mais de R$ 500 milhões.
O contrato que os procuradores irão receber foi assinado em 17 de agosto
de 2006. O documento tem 43 páginas e trata sobre a construção física
do estaleiro. De acordo com as revelações feitas pelo ex-funcionário da
Petrobras, para escapar do rigor da lei das licitações, a estatal
incumbiu a Rio Bravo Investimentos DTVM de conduzir a concorrência. O
processo licitatório, segundo a testemunha, foi dirigido de modo que a
WTorre superasse outras gigantes do setor e fechasse um negócio de R$
222,9 milhões para erguer a infraestrutura física do estaleiro adequado à
construção de plataformas semissubmersíveis. “A Camargo Corrêa chegou a
oferecer uma proposta melhor do que a da WTorre, mas depois a retirou e
apresentou outra com valor muito maior”, lembra o ex-funcionário da
estatal. “A gente ouvia que a WTorre estava ajudando o PT em São Paulo e
deveria ficar com a obra. Havia uma forte pressão da cúpula do PT”. O
ex-funcionário da Petrobras não diz nomes, mas os procuradores da Lava
Jato têm informações de que o ex-ministro Antônio Palocci seria o
consultor da WTorre nessa operação. Tanto Palocci como a empreiteira
negam. A WTorre afirma que participou de uma concorrência absolutamente
regular, cumpriu com sua parte no contrato e posteriormente vendeu os
direitos de exploração do estaleiro.
Finalizada a concorrência para a montagem do Estaleiro, a Rio Bravo
voltou à cena, segundo a testemunha, tornando-se gestora do negócio e
adquirindo os direitos decorrentes da construção e do contrato de
locação por dez anos. “A Rio Bravo converteu esses direitos em quotas do
fundo imobiliário que foram adquiridos pela Petrobras (99%). Deu-se
então outra operação heterodoxa: uma emissão de certificados de
recebíveis imobiliários (CRI), gerando assim uma receita antecipada para
os envolvidos na negociação. Em contratos públicos, normalmente a
empreiteira só recebe após a comprovação de que realizou determinada
etapa de uma obra. Nesse caso, o dinheiro caiu antes na conta”, afirma a
testemunha. De acordo com o ex-funcionário, “a Petrobras assumiu todo o
risco e bancou 80% do empreendimento”. Para o líder do DEM na Câmara,
deputado Mendonça Filho, toda a operação precisa ser apurada. “A
presidente Dilma referendou um contrato repleto de suspeição, fruto de
uma operação extremamente nebulosa, ao lado de um ex-diretor da
Petrobras que foi preso pela Operação Lava-Jato. Caberá à CPI e à
força-tarefa da Lava-Jato se debruçar sobre esse fato”, disse o
parlamentar. Mendonça Filho ressalta que o contrato entre a Rio Bravo e o
Estaleiro Rio Grande “é o primeiro documento nas investigações da
Petrobras com a assinatura da então ministra e hoje presidente Dilma”.
Para o líder parlamentar, a Petrobras foi “irresponsável”. “Tudo isso
mostra uma relação absolutamente promíscua, que claramente lesa o
interesse da própria empresa e repete a conexão de alimentação ilegal do
sistema político”, afirmou.
Ao revelar o que sabe para os procuradores da Lava Jato, a nova
testemunha vai complicar a situação de Renato Duque e de Pedro Barusco.
Segundo o ex-funcionário da estatal, em sua delação premiada Barusco
omitiu o que ocorrera antes da venda do Estaleiro pela WTorre a Engevix,
que conduziu as negociações para a compra dos navios-sonda, que
renderam propinas de R$ 40 milhões ao PT. “A delação do Barusco se
refere a algo posterior, depois que o estaleiro foi vendido pela WTorre
para a Engevix e o Funcef. Mas, não sei por que razão, ele preferiu não
dizer o que aconteceu antes disso”, disse o funcionário. Barusco,
segundo a testemunha, acompanhou a obra do estaleiro desde a assinatura
do contrato de 2006. “Tivemos algumas reuniões com ele. Era muito gentil
e objetivo. Fazia perguntas técnicas sobre o projeto”, lembra. Para o
trabalho “político”, o sub de Renato Duque também tinha um sub, o
gerente de Implementação de Projetos, Antonio Carlos Alvarez Justi,
apelidado de Barusco do Barusco.
Outra fraude, revelada pelo ex-funcionário da Petrobras se refere a
aditamentos milionários. De agosto de 2006 a setembro de 2010, segundo a
testemunha, foram assinados 12 aditivos, tanto para reajuste do valor
do contrato como para o alargamento de prazos. Alguns desses aditivos,
de acordo com a testemunha, foram justificáveis, outros não. “Sempre a
decisão política prevaleceu sobre a técnica”, diz. Em 2007, a Petrobras
anunciou que encomendaria ao estaleiro, além das plataformas
submersíveis, cascos de navios-sonda. Com isso, o projeto precisou ser
ampliado. Foi firmado um novo contrato de R$ 216,8 milhões, totalizando
R$ 440 milhões. Em 2008, a WTorre entrou com pedido de um aditivo de R$
365 milhões. “Criou-se uma comissão de negociação para avaliar o pleito e
o Justi cobrou uma solução rápida. Ele estipulou o prazo de 30 dias
para a comissão analisar o pleito e elaborar a minuta do contrato, algo
humanamente impossível”, revelou a testemunha. Justi, de acordo com o
funcionário, resistia a que o tema fosse levado ao Departamento Jurídico
da Petrobras por não querer questionamentos. Nesse caso, porém, uma
comissão interna da estatal reagiu. Providenciou uma auditoria nas
planilhas de custos apresentadas pela WTorre revelando que pelo menos R$
150 milhões do total do aditivo solicitado eram injustificáveis. “Eram
valores sem comprovação. Custos forjados para superfaturar o valor do
contrato”, afirmou o ex-funcionário. Mas o alerta feito pela comissão
interna da Petrobras não surtiu o efeito desejado. Dois anos depois,
conforme planilhas da Rio Bravo, o valor da obra alcançou R$ 711,6
milhões. E, graças a uma nova suplementação de recursos, ao final, a
obra foi orçada em R$ 840 milhões.
Em 2010, foi anunciada a venda do Estaleiro Rio Grande para a Ecovix,
uma companhia criada pela Engevix em parceria com o Funcef. Embora o
negócio só tenha sido oficializado em junho, há indícios de que a
transação já estava acertada nos bastidores desde o início do ano. A
testemunha conta que Gerson Almada, vice-presidente da Engevix
atualmente preso pela PF, foi comemorar o acerto num bar bastante
reservado, localizado no interior de uma loja de bebidas no Centro do
Rio. “Ele estava muito animado. Todos que estavam na mesa riam muito”,
lembra. Para formalizar o negócio da Engevix com a Funcef, segundo a
testemunha, Almada teria recorrido novamente aos préstimos de “um
cacique do PT”. “O Almada nunca escondeu que contava com o apoio da
cúpula do partido”, afirma a testemunha. À imprensa, a Engevix anunciou
que todo o negócio envolvendo a compra do Estaleiro custou R$ 410
milhões. Para o ex-funcionário da estatal, “o valor real foi pelo menos o
dobro.”
Com as revelações dessa nova testemunha, o Ministério Público deverá
aprofundar a investigação em torno dos negócios envolvendo o Estaleiro
Rio Grande. Os procuradores, no entanto, não poderão dar maior atenção
ao fato de Dilma ter assinado o contrato. Caso encontrem indícios de
crime no documento, todas as provas serão submetidas ao STF, dado ao
foro privilegiado da presidente, que não pode ser investigado em
primeira instância. No universo político a reação é outra. O deputado
Mendonça Filho já adiantou que pedirá que a CPI entre no caso. A
construção do Estaleiro Rio Grande já havia motivado requerimentos dos
deputados Ivan Valente (PSOL-SP) e Eliziane Gama (PPS-MA). Valente
pedirá prioridade na convocação do ex-ministro Antonio Palocci, depois
que reportagem publicada revelou que ele teria intermediado repasses ao
PT a partir de consultorias para a WTorre.
O fato de assinar o contrato não implica nenhum malfeito ou crime à
presidente Dilma Rousseff. No entanto, especialistas ouvidos pela
reportagem criticam o modelo de contratação do negócio e a participação
da Petrobras como interveniente no contrato assinado por Dilma. O
advogado Roberto Schultz, especialista em contratações públicas, acha
que é importante analisar, no conteúdo do contrato, em que base se deu a
participação da Petrobras. Segundo ele, é incomum ver uma empresa
estatal ou de economia mista entrando como um terceiro num contrato
entre empresas privadas. Esse interveniente geralmente é um “avalista”
do acordo para casos de descumprimento de obrigações contratuais. “É
muito raro. É difícil imaginar que alguém de uma empresa do porte da
Petrobras colocaria seu carimbo em um contrato. Quando algo é muito feio
você não diz que é feio, você diz que é diferente. Acho que é o caso”,
afirma. A presença de Dilma e da Petrobras no contrato, segundo ele,
espelharia o nível de envolvimento desses agentes com o projeto. “Mostra
que as empresas envolvidas têm muita força, muita influência política”,
diz. Schultz ressalta que “não faz sentido Dilma subscrever o contrato
nem como ministra da Casa Civil nem como presidente do Conselho de
Administração da Petrobras”. “Conselheiro não é um cargo de
administração.”
Também atuante na área de contratos empresariais, a advogada Suelen
Santos avalia como “atípica” a participação de autoridades públicas como
“testemunhas” no contrato. No caso, apenas “sócios” ou administradores
legitimamente constituídos deveriam avalizar o negócio. Ela lembra que a
presença de testemunhas é um requisito para casos de litígio. Procurada
pela reportagem, a Secretaria de Comunicação da Presidência da
República afirmou através de nota que a “instalação do Estaleiro Rio
Grande é parte do programa de desenvolvimento da indústria naval
brasileira. A produção no Brasil de equipamentos e bens para a
exploração do pré-sal constitui uma grande ação de governo, gerando
emprego e renda, ampliando as condições de crescimento da economia”.
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