Desde 1995: Temer é o presidente mais eficiente na relação com o Congresso
O desempenho de Michel Temer (PMDB) nas suas relações com o Congresso não faz o menor sentido.
Por se tratar de figura extremamente impopular, que chegou à Presidência
após um impeachment legítimo, embora controverso, e que vem se
defrontando com inúmeras e sérias acusações de corrupção e obstrução da
justiça, o mais racional seria que os membros de sua coalizão no mínimo
inflacionassem o preço do apoio político como consequência direta da
vulnerabilidade do chefe do Executivo.
O que se observa, no entanto, é justamente o inverso.
O governo tem sido capaz de aprovar projetos difíceis : o teto para os
gastos públicos, as reformas trabalhista e do ensino médio, a mudança do
marco regulatório do petróleo e a criação de uma nova taxa de juros
para o BNDES, entre outros exemplos. Muitas dessas propostas exigiram
quórum qualificado em dois turnos de votação em cada uma das Casas
Legislativas.
Além disso, iniciativas da oposição que visam a constranger o presidente
têm sido bloqueadas no Congresso, e as duas denúncias apresentadas pelo
Ministério Público Federal foram rejeitadas.
Mais surpreendente, Temer conseguiu todas essas vitórias mantendo sua coalizão estável a um custo agregado relativamente baixo.
Como um presidente com esse perfil pode ser tão eficiente nas suas
relações com o Congresso? Como Temer pode ser tão impopular entre os
eleitores e tão popular entre os deputados e os senadores?
A chave desse suposto enigma está na gerência da coalizão. Temer tem-se
saído incrivelmente bem numa tarefa típica de todo presidente num
sistema político multipartidário, no qual o partido do chefe do
Executivo em geral não dispõe de maioria no Legislativo.
A situação é diversa daquela normalmente verificada no presidencialismo
bipartidário dos Estados Unidos, onde a Casa Branca costuma contar com
apoio suficiente no Capitólio.
Tanto assim que os americanos têm um ditado que se aplica àqueles
períodos em que o governo não desfruta da maioria das cadeiras em pelo
menos uma das Casas Legislativas: “Se o contrário de pró é contra, o
contrário de progresso deve ser o Congresso”.
Ou seja, de um governo dividido, intrinsecamente minoritário, espera-se
maior frequência de paralisia decisória, de conflitos entre o Executivo e
o Legislativo e, provavelmente, de problemas de governabilidade, com o
presidente sendo refém do Congresso e impedido de realizar “progressos”.
Se valesse essa interpretação aritmética para presidencialismos
multipartidários, a condição de governo dividido seria observada na
maior parte dos casos.
Nos 18 países latino-americanos nos quais predomina a combinação de
presidencialismo com multipartidarismo, em apenas 26% das vezes a
legenda do presidente obteve maioria de cadeiras no Congresso.
Em relação ao Brasil pós-redemocratização, isso só ocorreu nas eleições
de 1986 para a Assembleia Nacional Constituinte, quando o PMDB de José
Sarney conquistou a maioria esmagadora dos assentos na Câmara e no
Senado.
Os presidentes pós-Sarney não tiveram a mesma sorte. Seus partidos
ocuparam no máximo 20% dos lugares na Câmara e 27% no Senado. Para
governar em uma condição a princípio adversa como essa, é preciso montar
e sustentar coalizões majoritárias pós-eleitorais.
Cabe salientar que esse arranjo está longe de ser especificidade
brasileira. A rigor, dois terços das atuais democracias são
presidencialistas ou semipresidencialistas e tipicamente são governadas
por coalizões multipartidárias.
A interpretação dominante na literatura especializada que investiga o
presidencialismo de coalizão brasileiro afirma que os poderes
constitucionais e de agenda delegados ao Executivo seriam suficientes
para superar os problemas inerentes da condição de governo minoritário e
para atrair partidos para a coalizão do presidente.
Dotado desses poderes, o chefe do Executivo teria condições de governar a
um custo relativamente baixo, aprovando a sua agenda em um ambiente
previsível e de cooperação com o Legislativo.
Entretanto, nem sempre é assim. Existe grande variação tanto na taxa de
sucesso das iniciativas legislativas de autoria do Executivo quanto nos
custos que o presidente enfrenta para aprovar essas medidas (ou bloquear
ações indesejáveis da oposição). O gráfico abaixo apresenta essa
comparação para os últimos sete governos brasileiros.
Gráfico mostra evolução dos sete últimos mandatos presidenciais |
A linha rosa representa a curva de tendência do custo de gerência da
coalizão dos presidentes brasileiros, enquanto os pontos rosas exprimem o
custo real mensal. A linha azul-clara remete à quantidade de propostas
legislativas de autoria do Executivo enviadas para o Congresso, e a
linha azul-escura indica quantas dessas iniciativas foram aprovadas.
Ou seja, o gráfico mostra a eficiência do presidente na gestão de sua
coalizão: um governo eficiente aprova mais proposições a um custo
relativamente baixo.
A medida do custo de gerência da coalizão é composta de três variáveis:
1) quantidade de ministérios (e secretarias com status de ministério)
que um presidente decide ter em seu governo; 2) total de recursos que
aloca entre os ministérios (e secretarias com status de ministério)
ocupados pelos membros da coalizão; 3) montante em emendas individuais
que os parlamentares fazem ao Orçamento anual e que o presidente
executa. (Nos itens 2 e 3, os valores em reais são calculados como
proporção do PIB.)
Desses três fatores resulta um índice sintético de custos de governo
(ICG), que permite comparar o nível de recursos disponibilizado pelo
presidente aos membros da sua coalizão e ao seu próprio partido. Esse
índice não deve ser interpretado de forma absoluta, e sim de forma
relativa a outros governos.
Claro que outras moedas de troca podem fazer parte do arsenal
presidencial: empréstimos subsidiados de bancos públicos, perdão
seletivo de dívidas com a União, distribuição de cargos de escalões
inferiores etc.
Infelizmente, porém, elas não atendem aos critérios de disponibilidade e
periodicidade nem dispõem de série longa o suficiente para permitir
comparações entre governos.
De qualquer forma, não existe motivo para pensar que as variáveis do ICG
e as demais moedas de troca não observáveis sejam substituídas umas
pelas outras. Na verdade, elas desempenham papel simétrico.
Essas medidas tendem a subir ou a descer juntas. Sabe-se que ao menos
duas delas — empréstimos subsidiados e programas de refinanciamento de
dívidas — foram utilizadas de forma recorde no período de maior
crescimento do ICG (final do segundo governo Lula e início do primeiro
governo Dilma).
Dado que não houve mudanças efetivas nos poderes do Executivo ao longo
desses 22 anos, o que explica tamanha variação tanto na taxa de sucesso
legislativo do presidente quanto no custo de governabilidade?
O primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), por exemplo, foi
caracterizado por um custo total relativamente baixo (média de 36
pontos). Interessante notar que os custos de FHC com o seu próprio
partido foram inferiores ao somatório de custos com as demais siglas da
coalizão (média de 40% e 60%, respectivamente).
No segundo mandato do tucano, houve um aumento expressivo dos custos
totais de governo (média de 59,5 pontos), que passaram a se concentrar
mais no próprio PSDB (55%) do que nos demais parceiros de coalizão
(45%).
No governo Lula (PT), os custos totais de governo aumentaram ainda mais
(média de 90,6 pontos) e o partido do presidente passou a ser
destinatário de 69% dos recursos.
Padrão semelhante se reproduziu no segundo mandato de Lula. Os custos
totais ainda aumentaram um pouco (média de 95,2 pontos), sobretudo a
partir da metade do período, devido a uma ampliação dos custos com as
outras siglas da coalizão, embora o PT tenha continuado a receber a
maior fatia (60%).
A primeira gestão de Dilma Rousseff (PT) apresentou pequena queda nos
custos totais de governo (média de 88,1 pontos), com sensível
aproximação entre as proporções dos recursos destinados ao PT (51%) e
aos aliados (49%).
No curto segundo mandato de Dilma, os custos totais de governabilidade
declinaram consideravelmente (média de 58 pontos), alcançando o mesmo
patamar do segundo termo de FHC. Contudo, o PT voltou a ser recompensado
de forma desproporcional em relação aos outros parceiros da coalizão
(56% e 44%, respectivamente).
Apesar do aumento dos custos de gerência da coalizão durante as
administrações petistas, a capacidade de aprovação de iniciativas
legislativas de seus presidentes declinou sensivelmente, especialmente a
partir do começo do segundo governo Lula e no final do primeiro mandato
de Dilma.
Com o impeachment de Dilma e a ascensão de Temer, os custos da
governabilidade despencaram e alcançaram os níveis mais baixos da série
histórica (média de 15,4 pontos). Além disso, houve uma inversão radical
na sua composição, com 70% dos recursos distribuídos entre parceiros da
coalizão e 30% direcionados ao PMDB.
Nota-se ainda o aumento do número de propostas legislativas de autoria
do Executivo, inclusive reformas constitucionais, a indicar que o
presidente recuperou o poder de agenda no Congresso. Por fim, a taxa de
sucesso dessas iniciativas cresceu consideravelmente.
Isto é, como o gráfico indica, o governo Temer tem sido mais eficiente
que seus predecessores, com aumento do apoio legislativo obtido a um
custo relativamente baixo.
Dito de outro modo, Temer tem sido mais feliz que seus antecessores ao
perseguir o objetivo de todo presidente na administração de um governo
racional: maximizar o apoio político com o menor custo possível.
Num ambiente multipartidário, os riscos de conflitos entre o Executivo e
o Legislativo podem ser multiplicados ou reduzidos de acordo com as
escolhas que o presidente faz para gerenciar sua coalizão.
Portanto, ao definir quantos e quais partidos integrarão sua base, o
chefe do Executivo precisa levar em conta a preferência ideológica
desses parceiros, determinar a quantidade de poder e de recursos que
serão compartilhados entre eles e, finalmente, analisar se a preferência
da sua coalizão espelha a preferência do Congresso.
Essas escolhas são muito importantes, pois elas têm consequências
decisivas para a capacidade de governo de um presidente e para a
qualidade de suas relações com o Legislativo.
Quanto maior o número de partidos na base, quanto maior a
heterogeneidade ideológica entre eles, quanto menor a proporcionalidade
na alocação de recursos (políticos e monetários) e quanto maior a
diferença entre as preferências da coalizão e as do plenário do
Congresso, maiores serão as dificuldades de coordenação dos aliados e,
por consequência, maiores os custos de governabilidade.
Entretanto, é bom destacar que o equilíbrio em uma coalizão não é
estático. Pode variar diante de choques externos ou internos (crise
econômica, escândalo de corrupção etc.) e quando os membros da coalizão
(presidente e partidos) decidem renegociar a aliança à luz de novas
condições (uma sigla passou a ser mais importante ou o presidente se
fragilizou, por exemplo).
Modificados os termos da negociação, o governo precisa alcançar novo equilíbrio, o que engendra uma nova matriz de custos.
Quando se analisam esses fatores, ficam evidentes as disparidades das escolhas de montagem e gerência de alianças.
FHC, por exemplo, montou uma coalizão com um número baixo de parceiros (média de 4 e 4,6 siglas).
A heterogeneidade ideológica de seus governos foi muito parecida e
relativamente baixa, 31 e 30,5 pontos, respectivamente — cálculo feito a
partir dos dados de ideologia partidária propostos por Timothy Power e
Cesar Zucco (2012), através de pesquisa de opinião com os próprios
legisladores.
Com a chegada do PT ao poder, especialmente no primeiro mandato de Lula,
a heterogeneidade ideológica da coalizão governista aumenta bastante,
alcançando o patamar de 48 pontos, na média. Particularmente nos seus
primeiros meses de governo, a base aliada atingiu o pico de diversidade
ideológica na série, com 54 pontos.
No segundo mandato do petista, o valor médio da heterogeneidade da
coalizão caiu um pouco, mas ainda permaneceu comparativamente muito
alto, 42 pontos. O número de siglas na base governista também era
elevado (média de 7,7 e 9,1 partidos no primeiro e segundo governos,
respectivamente).
Dilma também montou coalizões com um grande número de legendas (média de
7,8 e 7,9 partidos). No primeiro mandato, a heterogeneidade média da
base voltou a subir para 45,5 pontos, demonstrando mais uma vez a
dificuldade do PT de montar alianças congruentes com seu perfil
ideológico.
Após sua reeleição, com uma estratégia clara de sobrevivência política,
Dilma reduziu bastante a heterogeneidade média de sua coalizão, mas
ainda assim para um nível elevado (quase 37,7 pontos).
Temer, por sua vez, lidando com a maior fragmentação partidária da
história do presidencialismo brasileiro, montou uma coalizão com o maior
número de aliados (dez). Ainda assim, tem conseguido gerenciar a
coalizão ideologicamente menos heterogênea da série, apenas 27,1 pontos
na média.
Essa constatação empírica joga por terra a pressuposição de que
fragmentação partidária necessariamente leva presidentes a gerenciar
coalizões ideologicamente heterogêneas ou mais caras.
Com relação à concentração de poder, ela foi medida pelo índice de
coalescência, consagrado na literatura (Octavio Amorim Neto, 2006), que
mede o grau de proporcionalidade entre o gasto com os partidos e o peso
de cada um deles na coalizão — quanto mais próximo de cem, mais
proporcional é a divisão de poder.
Temer, além de reduzir o número de ministérios, decidiu compartilhar
muitos espaços com os aliados. Essa estratégia levou sua coalizão a
apresentar o nível mais alto de proporcionalidade da série (média de
80,4 pontos).
As gestões do PT, em contraste, tiveram tendência de baixo compartilhamento de poder com aliados.
Lula, em seu primeiro mandato, alocou 21 (60%) dos seus 35 ministérios
para membros do próprio PT, que ocupava 18% das cadeiras na Câmara. O
PMDB, que detinha 15% de cadeiras na Câmara, recebeu dois ministérios
(6%). Consequentemente, a proporcionalidade de sua coalizão foi
relativamente mais baixa (média de 65,5 pontos).
No segundo mandato, Lula melhorou a proporcionalidade da coalizão (média
de 69,1 pontos), mas o índice de coalescência ainda ficou abaixo do
registrado nos governos FHC (média de 71,4 e 73,8).
Dilma manteve prática muito parecida com o padrão monopolista do governo
Lula, com 46% dos ministérios distribuídos para o PT no primeiro
mandato, partido que ocupava 17% de cadeiras na Câmara. A
proporcionalidade de sua coalizão ficou em torno de 68,9 pontos.
No seu segundo mandato, fez um esforço considerável de compartilhamento
de poder com os aliados, alcançando média de 75,6 pontos.
A decisão de Dilma de montar coalizões menos heterogêneas e menos
monopolistas proporcionou uma redução em seus custos de gerência. É
possível, porém, que esse esforço tenha ocorrido tardiamente, pois não
foram efetivos para evitar a quebra da coalizão e barrar seu
impeachment.
E mesmo que do ponto de vista aritmético coalizões petistas tenham sido
majoritárias, suas preferências ideológicas, na média, ficavam distantes
das preferências do plenário. A exceção ficou por conta do segundo
mandato de Dilma, quando, numa tentativa quase desesperada de
sobrevivência, aproximou-se da mediana do plenário.
FHC e Temer, por outro lado, montaram coalizões que, na média, espelharam as preferências ideológicas do plenário.
Os impactos das escolhas na gerência da coalizão vão além dos custos da
governabilidade. A depender das circunstâncias, eles podem afetar a
dinâmica do Congresso e ajudar a determinar o resultado da eleição para a
presidência da Câmara, por exemplo, peça-chave no controle da agenda
legislativa.
Com frequência, o papel relevante de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) no
impeachment de Dilma é tomado como elemento exógeno, como se sua
ascensão repentina fosse obra do imponderável. Essa perspectiva, no
entanto, desconsidera como e por que ele chegou ao comando da Câmara.
A emergência e a atuação de Cunha resultaram das escolhas de gerência de
coalizão do PT, e não de disfuncionalidades do presidencialismo de
coalizão ou de idiossincrasias da personalidade do ex-deputado.
Não fosse a estratégia monopolista de gestão da base aliada e a
tentativa petista de desidratar o PMDB, talvez a eleição para a
presidência da Câmara tivesse desfecho diferente.
Para um parceiro político que já não vinha sendo recompensado de acordo
com o seu peso no Congresso durante todos os governos petistas, a quebra
da coalizão parecia uma questão de tempo e de oportunidade. O acúmulo
de animosidades era evidente.
Naturalmente, a exposição de contas secretas de Cunha, feita no bojo da
Lava Jato, abalou o equilíbrio da coalizão. O preço que ele cobrou pela
sua proteção se tornou proibitivo para o governo e para o PT, mesmo
diante dos riscos de que o então presidente da Câmara desse sequência
aos sucessivos pedidos de impeachment.
O jogo, assim, adquiriu uma dimensão de sobrevivência individual, e as
promessas do governo de salvar Cunha da cassação deixaram de ser
críveis: desde o julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal,
os órgãos de controle saíram do controle dos políticos.
Diante de sucessivos mal-entendidos, insatisfações pelas promessas não
cumpridas e pelo acesso reduzido a poder e a recursos controlados
desproporcionalmente pelo PT, os aliados começaram a construir
alternativas para aumentar o seu poder de barganha nas negociações e
tentar reequilibrar a distribuição de poder e recursos.
Em presidencialismos multipartidários, portanto, o presidente precisa
saber manusear as ferramentas de manutenção e gerência de sua coalizão
se quiser ser efetivo no Legislativo a um custo de governabilidade
relativamente baixo.
Além do mais, o Executivo não pode ignorar as preferências do Congresso
se desejar terminar o seu mandato, mesmo que isso implique perdas de sua
popularidade e/ou ajustes momentâneos de sua preferência política.
Numa inversão do ditado americano sobre o governo paralisado, diante de
uma ineficiente gerência de coalizão, o contrário do “progresso” deixa
de ser o Congresso e passa a ser o próprio presidente.
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