Fazenda doada por Gilberto Gil ao MST segue sem assentados após dez anos
A fazenda em Cravolândia, a 300 km de Salvador (BA) |
Mais de uma década depois, uma fazenda doada pelo compositor Gilberto
Gil ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), na zona rural
de Cravolândia (BA), a 300 km de Salvador, segue quase esquecida e sem
moradores fixos.
História pouco conhecida, o sonho da pequena reforma agrária se iniciou
em 2003. Simpatizante do MST, o então ministro da Cultura de Lula
resolveu entregá-la aos sem-terra, na expectativa de um renascimento da
propriedade.
A experiência campesina de Gil deve-se à amizade com o designer Rogério
Duarte (1939-2016), do grupo da Tropicália. Unidos na viagem
tropicalista, Duarte criou para Gil mais capas de discos do que para
qualquer outro amigo. São dele os projetos visuais de "Gilberto Gil"
(1968), "Gilberto Gil" (1969), "Gilberto Gil ao Vivo" (1974) e "Gil
Jorge Ogum Xangô" (1975), além da marca de "Refazenda" (1975).
Compadres, eles fizeram juntos as músicas "A Última Valsa" e "Objeto
Semi-identificado".
Na década de 1980, uma fazenda no vale do Jiquiriçá renovaria essa
ligação espiritual. Em 1977, o designer deixou Brasília e voltou a morar
na Bahia com a mulher, Telma, convertendo-se à vida de fazendeiro. Num
depoimento de outubro de 1997, disponível no site do músico, Duarte
lembrou de "um sufoco financeiro total e absoluto". Em turnê pelo
interior baiano, Gil quis ajudá-lo, comprando metade da fazenda.
Passados alguns anos, o designer vendeu a propriedade para investir em
outras duas de tamanho menor. "Eu resolvi vender a fazenda sem sequer
lhe consultar", relembrou no diálogo com Gil. Nessa fase, o amigo teria
direito a uma fatia proporcional ao investimento. Em 2003, Gil avisou
que doaria a parte que lhe cabia ao MST.
A fazenda fica em região próxima à Palestina, um antigo latifúndio
exportador de café que se transformou num assentamento de 4,3 mil
hectares, onde vivem 180 famílias desde 1999, de acordo com o Incra
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Os frequentadores
de um bar do vilarejo ainda chamam a propriedade da vizinhança, doada
ao MST, como "a fazenda de Gilberto Gil", a 30 minutos de carro do
centro da cidade.
Quilômetros adiante, o pequeno agricultor Florisvaldo Sena dos Santos,
32, aceitou guiar a reportagem até o local. Em novembro de 2015, Duarte
também indicou onde ficava a terra de até 70 hectares. "Largaram mão e o
capim tomou conta. Tem carrapato de matar com o pau."
Dias antes, afetada pela chuva, a estrada de barro estava enlameada. Em
19 de agosto, restavam poças ao longo do trajeto. O carro não avançou
por todo o caminho estreito. A alternativa foi andar numa trilha, descer
e subir morros verdejantes, e enfim avistar uma casinha de barro, bem
descascada, e a porteira embaixo de uma colina com a mata. Não havia
cuidadores naquela tarde.
"Antigamente era café, laranja, manga, muita fruta que tinha aqui.
Jaqueira, gado ... Hoje, está tudo largado", disse Florisvaldo, num
cenário talvez propício à Refazenda descrita na canção de Gil. Na
propriedade ao lado, o trabalhador rural Gércio Cerqueira dos Santos,
35, afirmou que somente um homem costuma aparecer na terra vizinha, duas
vezes por semana.
Líderes do MST na Bahia, Márcio Matos e o representante estadual da
direção do movimento, Evanildo Costa, evitaram falar com a reportagem,
depois do primeiro contato telefônico. O deputado federal Valmir
Assunção (PT), político formado no MST que acompanhou a conversa para a
doação, não respondeu ao pedido de entrevista.
Em mensagem por e-mail, o MST baiano admite a inércia: "De acordo com a
direção do MST no Estado, a área doada por Gilberto Gil não comporta um
assentamento de reforma agrária, as informações que temos apontam que o
sítio possui entre 40 a 70 hectares. Esse processo pode ser confirmado
com o Incra, órgão responsável pelo processo de desapropriação. Além
disso, existem diversas dificuldades de acesso, tendo em vista que
historicamente não houve investimentos em infraestrutura".
"O MST até então, por conta destas questões e das demandas emergenciais
do dia a dia, até o exato momento, não fez um investimento maior na
propriedade, não havendo moradores fixos na localidade", relata.
A superintendência do Incra no Estado informa que Gilberto Gil "pode
fazer doações de áreas rurais a associações de agricultores e pessoas
físicas, mas ao Incra não há nenhum processo em questão". E detalha: uma
área de 70 hectares, em Cravolândia, é considerada "uma pequena
propriedade" (na cidade, cada módulo fiscal possui 35 hectares). A
legislação do Incra "determina que a criação de assentamentos só seja
realizada para assentar, no mínimo, 15 famílias".
A reportagem apurou que nenhuma das atuais restrições foi manifestada
pelo MST a Gil, na época da entrega. Nos últimos anos, o compositor
sentia-se curioso pelas consequências do gesto.
A reportagem pretendia contar o destino dos possíveis beneficiados pelo
presente do artista. E descobriu que, até agora, não há assentados. Em
tratamento de saúde por insuficiência renal, Gil não vai se manifestar,
mas soube da apuração da história. Fotos do lugar foram enviadas para
sua mulher, Flora, e para a assessoria dos sem-terra.
Na sede do MST, em Salvador, a integrante da secretaria estadual,
Edineia Santana, justificou a ausência de ações: "Nos últimos dez anos,
vieram outras prioridades. Como é uma terra conquistada, o processo
precisa ser retomado". Apesar da promessa, não foi apresentada a
documentação com os dados da propriedade rural. O MST pensa na ideia de
uma "área experimental" de agricultura.
"Muita gente quer terra, e esta aí fica sem ninguém. A fazenda tem o
mais importante: água", ressaltou o agricultor Florisvaldo, que conhece
pouco a obra de Gilberto Gil e não rejeitaria um pedaço do paraíso.
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