Itamaraty propõe burlar lei para proteger Lula
Diplomata pede sigilo de papéis sobre ex-presidente e Odebrecht, que, pela lei, são públicos
O Ministério das Relações Exteriores deflagrou ação para evitar que
documentos que envolvam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a
Odebrecht, empreiteira investigada na Operação Lava-Jato, venham a
público. A ordem interna partiu do diretor do Departamento de
Comunicações e Documentação (DCD) do Itamaraty, ministro João Pedro
Corrêa Costa, depois que o órgão que ele dirige recebeu um pedido de
informações de um jornalista baseado na Lei de Acesso à Informação. A
reportagem obteve um memorando que ele disparou, na última terça-feira
(09.jun.2015), sugerindo a colegas do Itamaraty que tornassem sigilosos
documentos “reservados” do ministério que citam a Odebrecht entre 2003 e
2010, que, pela lei, já deveriam estar disponíveis para consulta
pública.
Pela lei, papéis “reservados” perdem o sigilo em cinco anos. No ofício
interno do Itamaraty, o diplomata cogita a reclassificação dos
documentos como “secretos”, o que aumentaria para 15 anos o prazo para
divulgação. Dessa forma, as informações continuariam sigilosas por até
dez anos.
O memorando de Costa enviado à Subsecretaria-Geral da América do Sul,
Central e do Caribe (Sgas) foi motivado por um pedido feito pela Lei de
Acesso à Informação pelo jornalista Filipe Coutinho, da revista “Época”.
Ele solicitou todos os telegramas e despachos reservados do ministério
que citam a Odebrecht e que, por conta do prazo, já deveriam ser
públicos. No pedido, não há referência a Lula. A citação ao
ex-presidente aparece apenas na justificativa dada pelo chefe do DCD
para pedir a reanálise dos documentos antes de decidir o que pode ou não
ser entregue ao jornalista. O texto admite que os papéis já deveriam
ser públicos:
“Nos termos da Lei de Acesso, estes documentos já seriam de livre acesso
público. Não obstante, dado ao fato de o referido jornalista já ter
produzido matérias sobre a empresa Odebrecht e um suposto envolvimento
do ex-presidente Lula em seus negócios internacionais, muito agradeceria
a Vossa Excelência reavaliar a anexa coleção de documentos e determinar
se há, ou não, necessidade de sua reclassificação para o grau de
secreto”.
Em 30 de abril deste ano, a revista “Época” publicou reportagem sobre
abertura de investigação do Ministério Público Federal (MPF) relativa à
suspeita de tráfico de influência praticada por Lula para beneficiar
negócios da Odebrecht no exterior. A investigação do MPF foi aberta a
partir de reportagem, que revelou, no dia 12 de abril, viagens de Lula
pagas pela empreiteira.
Segundo a Lei de Acesso, sancionada pela presidente Dilma Rousseff em
maio de 2012, documentos com grau de “reservado” são protegidos por
apenas cinco anos a partir da data em que foram originados. Já os
“secretos” são protegidos por 15 anos. Isso significa que todos os
documentos reservados durante o governo Lula já poderiam ser de
conhecimento público. Se a reclassificação cogitada pelo DCD for feita,
os documentos requeridos pelo jornalista passarão a ter o sigilo
estendido em até dez anos. Os mais antigos, de 2003, só poderão ser
liberados em 2018. Já os mais recentes do pedido, de 2010, só seriam
conhecidos em 2025.
O departamento responsável pela busca de material requisitado via Lei de
Acesso já tinha compilado e imprimido o material para entregar ao
repórter, mas recebeu o pedido para reavaliar tudo. Os arquivos foram
distribuídos para cada setor do Itamaraty responsável pelos temas
abordados para que eles analisassem o que era considerado comprometedor
e, portanto, poderia ganhar o status de “secreto”.
Além do memorando, os funcionários que deveriam executar essa tarefa
receberam um e-mail explicando como deveriam agir. A mensagem faz
referência a procedimento similar realizado pelo Itamaraty no mês
passado: separar em duas pastas o material autorizado para divulgação e o
material que deveria ser reclassificado.
O memorando foi enviado no dia 9 de junho, e o prazo dado por Costa para
que os diplomatas fizessem a análise vencia hoje, a tempo de decidir
pela reclassificação antes de vencer o prazo que o Itamaraty tem para
responder ao pedido de informação feito pelo jornalista, que é de 20
dias. A lei diz que órgãos públicos podem prorrogar o prazo por mais dez
dias. O memorando obtido pela reportagem não aponta a data em que o
pedido foi feito.
Segundo a Lei de Acesso, o governo pode, antes de liberar um documento
desclassificado, analisar o conteúdo para saber se ainda há algum trecho
que precisa ser protegido por motivo legal ou que possa violar a
intimidade de uma pessoa. Nesses casos, o documento pode ser liberado
com tarjas nos trechos ainda sensíveis, ou o órgão pode reclassificar o
texto para que o sigilo permaneça por mais tempo. Entretanto, tudo tem
que ser feito com base no disposto na lei, onde não há previsão de
proteção da imagem de ex-presidente por conta de possíveis reportagens,
justificativa interna usada por Costa para pedir a reavaliação.
No fim de abril, o Ministério Público Federal (MPF) abriu um
procedimento na primeira instância da Justiça Federal para apurar se
Lula praticou tráfico de influência em favor da Odebrecht na obtenção de
contratos no exterior com financiamento do BNDES. O MPF apura se o
petista obteve, entre 2011 e 2013, vantagem financeira para influenciar
agentes públicos em atos relacionados a transações comerciais
internacionais da empreiteira.
A reportagem que motivou a ação do MPF revelou que o diretor de Relações
Institucionais da empreiteira, Alexandrino Alencar, acompanhou o
ex-presidente em viagem a três países: Cuba, República Dominicana e
Estados Unidos. Os custos foram pagos pela Odebrecht, e a viagem foi
caracterizada como sigilosa em documentos da empresa de táxi aéreo que
alugou o jatinho usado no périplo. Alencar é acusado por delatores na
Operação Lava-Jato de ser operador de pagamento de propinas da
Odebrecht. A companhia nega essa acusação e a de participar do cartel de
empreiteiras que fraudava contratos na Petrobras, alvo da Lava-Jato.
Segundo fontes ouvidas, a ordem para a reclassificação de documentos no
Itamaraty estaria ocorrendo sistematicamente. Às vésperas do início da
vigência da Lei de Acesso, em maio de 2012, o ministério montou uma
força-tarefa para reclassificar uma série de documentos. E em 2014,
depois da polêmica envolvendo os gastos da presidente Dilma Rousseff em
uma escala que fez a Lisboa, o DCD enviou a todos os postos do Brasil no
exterior uma circular telegráfica com a ordem de que, a partir daquele
momento, todas as despesas de Dilma em viagens internacionais deveriam
ser sigilosas. Na parada que fez na capital portuguesa, entre a visita a
Davos e seu comparecimento à cúpula da Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), em Havana, a presidente se
hospedou na suíte presidencial do luxuoso hotel Ritz, cuja diária
custava, à época, R$ 26,2 mil.
A reportagem perguntou ao Itamaraty se havia orientação específica para a
reclassificação de documentos relacionados a alguma empresa que tenha
sido vinculada a autoridade ou ex-autoridade, como o ex-presidente Lula.
O Ministério das Relações Exteriores negou que tenha dado tal ordem.
“Não há qualquer orientação formal nesse sentido”, diz a nota enviada.
No caso dos documentos reservados produzidos entre 2003 e 2010, o
Itamaraty diz que “a orientação geral é a de que pedidos de informação
que tratem de matéria cuja divulgação possa ainda prejudicar os
interesses externos do país sejam reavaliadas”.
O ministério informou que o Departamento de Comunicações e Documentação
supervisiona o trabalho de reclassificação de documentos que é feito por
cada uma das áreas temáticas da chancelaria. Sustentou também que segue
o disposto na Lei de Acesso, que prevê a reavaliação periódica de
documentos classificados. O ministério informou que adota critérios da
lei nessa reavaliação, como o que prevê proteção a documentos que possam
“prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações
internacionais do país, ou as que tenham sido fornecidas em caráter
sigiloso por outros Estados e organismos internacionais”. Os pedidos de
informação, segundo o Itamaraty, são examinados caso a caso.
O Itamaraty frisou que “cumpre rigorosamente os dispositivos
estabelecidos pela Lei de Acesso à Informação no que diz respeito às
normas de classificação da informação oficial”. Explicou ainda que,
desde a edição da lei, foram desclassificados 32.485 documentos, de um
total de 85.992 produzidos desde 1983.
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