A corrupção veste farda: militares desviam dinheiro público como civis — TCU investiga centenas de casos
de desvio de dinheiro público dentro das Forças Armadas
de desvio de dinheiro público dentro das Forças Armadas
Muitos cidadãos defendem uma nova intervenção militar no Brasil. O
argumento de quem pede pela volta das Forças Armadas ao poder é o de que
“não havia corrupção” na época da ditadura e os militares poderiam “dar
um jeito” no Brasil. Registros da Procuradoria-Geral de Justiça
Militar, porém, mostram que não é bem assim: militares desviam recursos
públicos, fraudam licitações, pedem e recebem propina. Basta terem
oportunidade e não temem punição.
Os registros da Procuradoria-Geral de Justiça Militar expõem os abusos
com dinheiro público nas Forças Armadas. São processos pelo crime de
peculato (desvio de dinheiro público em proveito próprio) e por
corrupção ativa ou passiva — todos abertos nos últimos cinco anos. O
material foi remetido ao Tribunal de Contas da União; investigadores da
Corte estão destrinchando irregularidades encontradas nas três Forças,
com prejuízos milionários aos cofres públicos. Os casos restringem-se a
danos ao Erário superiores a R$ 100 mil.
Mais de 300 investigações estão em andamento no Tribunal de Contas da
União (TCU) sobre irregularidades encontradas na Aeronáutica, no
Exército e na Marinha. São 255 processos pelo crime de peculato (entre 2012 e 2017) e 60 por
corrupção ativa ou passiva.
O valor estimado de prejuízo aos cofres públicos nesses principais casos
é de R$ 30 milhões, mas, a depender do avançar das investigações, pode
se revelar maior. O levantamento não inclui processos contra militares
ajuizados na Justiça comum — os casos da Justiça Militar são de crimes
que provocam prejuízo apenas às Forças Armadas. Num país acostumado a
flagrantes de malas de dinheiro rodando com políticos e desvios na casa
de bilhões na Petrobras, parece mixaria. Esses R$ 30 milhões são pouco
mais que a metade da fortuna encontrada no apartamento associado ao
ex-ministro Geddel Vieira Lima, apenas um entre mais de uma centena de
investigados pela Operação Lava Jato. São valores bem mais modestos
ainda que os registrados no sistema de propina da Odebrecht, como os R$
300 milhões que a empresa afirma ter destinado ao PT para ajudar os
planos do ex-presidente Lula. Mas é uma questão de escala. Os militares
administram um orçamento anual de R$ 86 bilhões, quase tudo atrelado a
salários e pensões; apenas R$ 7 bilhões são gastos em investimentos e
estão, portanto, sujeitos a desvios como esses investigados. Militares
não têm acesso aos maiores cofres do governo federal, não fazem campanha
eleitoral e não têm conexões no Congresso para aprovar leis. Ou seja,
têm menos oportunidades de fazer negociatas.
Antonio Hamilton Martins Mourã |
Embora os casos não apontem um cenário de corrupção institucionalizada e
generalizada, os processos trincam o argumento recentemente vociferado
por apoiadores de uma estapafúrdia intervenção militar como solução para
a crise atual, como defendido recentemente pelo general do Exército
Antonio Hamilton Martins Mourão. Confortável, usando um uniforme repleto
de medalhas no peito diante de uma plateia dócil em uma loja maçônica
de Brasília, em 15 de setembro o general acenou com a possibilidade de
intervenção militar para extirpar os corruptos da vida pública. “Ou as
instituições solucionam o problema político, ou pela ação do Judiciário,
retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os
ilícitos, ou então nós teremos de impor isso”, disse Mourão.
Ouvidas as palavras do general Mourão na maçonaria e de seus apoiadores,
soa irônico que até a Lava Jato tenha pilhado militares em casos de
corrupção. O vice-almirante da Marinha Othon Pinheiro da Silva, que
comandou a estatal Eletronuclear, foi condenado a 43 anos de prisão por
corrupção, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e organização
criminosa nas obras da usina nuclear de Angra 3, acusado de receber R$
4,5 milhões de propina. Sua defesa diz que os pagamentos eram por uma
consultoria feita às empreiteiras antes de assumir a Eletronuclear.
Segundo o TCU, existem indícios de que as Forças Armadas não tomam as
providências necessárias para recompor o prejuízo aos cofres públicos
causados pela corrupção em suas fileiras. “Foi constatado que havia
casos em que o Exército deveria ter instaurado a tomada de contas
especial para apurar os fatos, e não o fez”, afirma o tribunal. Em março
deste ano, o TCU abriu um processo para apurar “possíveis
irregularidades relacionadas com a não instauração de tomadas de contas
especiais para apurar dano ao Erário” e deu prazo de 180 dias para que o
Comando do Exército apure o prejuízo causado pelos problemas na gestão
do Hospital Militar de Área de Recife e em possíveis irregularidades em
obras do Instituto Militar de Engenharia.
Entre maio de 2009 e março de 2010, a conta-corrente do coronel do
Exército Odilson Riquelme, no Banco do Brasil, recebeu dois cheques no
valor total de R$ 37.373,00. Os depósitos se repetiram nos meses
seguintes. Os cheques foram emitidos pela empresa Sequipe, prestadora de
serviços de quimioterapia ao Hospital Militar de Área de Recife (HMAR),
onde Riquelme cuidava dos contratos. Os valores equivaliam a 10% dos
pagamentos feitos à Sequipe pelos contratos com o hospital. Os
investigadores do Ministério Público Militar (MPM) descobriram o esquema
após denúncia de um ex-funcionário. Confirmou-se que o dinheiro — R$
205 mil no total — havia sido pedido à empresa pelo então diretor do
HMAR, coronel Francisco Monteiro. Ele alegou que seriam “doações” para o
hospital. Mas cheques obtidos pelos investigadores mostraram que o
dinheiro acabou em contas-correntes dos militares e de pessoas ligadas a
eles, não no caixa do hospital.
O caso do coronel Riquelme está longe de ser uma exceção nas Forças
Armadas Brasileiras. Embora persista o mito de que os militares são mais
honestos do que os civis no trato com a coisa pública, não há evidência
empírica disso. Tanto militares quanto civis desviam recursos públicos,
fraudam licitações, pedem e recebem propina. Não há estudos que
indiquem qualquer distinção entre a escala de corrupção nos mundos civil
e militar. Pelas teorias mais recentes na literatura sobre corrupção,
duas coisas, em especial, tendem a aumentar as chances de tunga aos
cofres públicos: oportunidades para roubar e a percepção de que não
haverá punição. Ambas existem, no Brasil, entre militares e civis. Estes
não são especialmente desonestos. Aqueles não são especialmente probos.
O marechal Castelo Branco (de terno) primeiro presidente do regime militar em São Paulo, em 1964 |
Oficial do Exército é condenado por desvio — o
tenente-coronel Márcio Pires foi acusado de vender 80 toneladas de
alimento e receber pagamento na própria conta bancária — uma
fiscalização constatou um rombo no estoque de alimentos do Depósito de
Subsistência de Santa Maria, Rio Grande do Sul, do Exército brasileiro. A
quantidade existente de carne bovina, frango, carne suína, feijão-preto
e leite em pó era muito menor do que estava registrado na
contabilidade. O balanço constatou que mais de 80 toneladas de alimentos
tinham sumido. Após investigação, o Ministério Público Militar colheu
relatos de que os alimentos eram desviados por ordens do
ex-tenente-coronel Márcio Pires em benefício de terceiros. A quebra de
sigilo detectou diversos depósitos diretamente na conta-corrente do
próprio Pires e, segundo testemunhas, eram pagamentos pelo material
desviado. Um laudo financeiro da Polícia Federal apontou que a evolução
patrimonial de Pires era incompatível com seu salário no Exército, sua
única fonte de renda declarada.
Diante desses fatos, Pires foi condenado pelo Superior Tribunal Militar
(STM) a quatro anos e oito meses de cadeia pelo crime de peculato, por
“ter praticado contínuos desvios de gêneros alimentícios, valendo-se das
facilidades advindas das funções que exercia, com intuito de enriquecer
ilicitamente”. O STM decidiu ainda por uma punção extra: em 11 de maio
deste ano, Pires foi considerado “indigno para o oficialato” e perdeu
seu emprego e sua patente de tenente-coronel. Raros são os casos em que o
STM decide por pena tão dura, porque é necessário que o réu tenha sido
condenado a uma pena superior a dois anos e que não caiba mais nenhum
recurso contra a condenação.
De acordo com a decisão do tribunal, as ações do tenente-coronel Pires
“macularam não só a sua honra individual, mas também o pundonor militar,
o decoro da classe e a imagem da própria Força a que pertence,
atingindo diretamente os valores de condutas moral e profissional
inerentes às suas obrigações como Oficial do Exército Brasileiro”. Nos
autos, a defesa argumentou que, no ano das irregularidades, Pires não
era responsável pelo depósito de alimentos e que suas contas foram
integralmente aprovadas pelos órgãos fiscalizadores do Exército.
O STM também decidiu, no mês passado, a perda do emprego e da patente do
ex-tenente coronel Hélio Cardoso Câmara depois que foi condenado a seis
anos de reclusão por desvios de recursos — estimados em 538 mil reais —
da 1ª Divisão de Levantamento do Exército, comprovados pela sua
movimentação financeira acima dos rendimentos. A defesa do ex-tenente
coronel Hélio diz que os recursos passaram por curto período por sua
conta, mas não foram usados em benefício pessoal.
Pagamento de propina em dinheiro vivo para sargento da Marinha
foi filmado por dono de barco, que diz ter sido chantageado por militar
— a investigação até pareceu coisa da Operação Lava Jato: teve filmagem
de uma entrega de dinheiro, com notas previamente registradas e
fotografadas. Num dos pontos turísticos de Belém, a Feira do Açaí, uma
ação registrou em vídeo o segundo-sargento da Marinha Nilton Alves
recebendo um envelope com propina de R$ 500, com cinco notas de R$ 100
fotografadas antes. O pagamento era em troca da liberação de uma
embarcação que havia sido apreendida por sua equipe de fiscalização
marítima, após constatar que estava sem a documentação necessária.
No dia 30 de agosto, o Superior Tribunal Militar condenou, em segunda
instância, o sargento Alves a uma pena de dois anos e quatro meses de
prisão pelo crime de concussão, previsto no Código Penal Militar. A
prova cabal foi filmada por uma microcâmera instalada no corpo de Pedro
Fabiano Pereira, dono da embarcação que foi ao encontro do sargento para
fazer o pagamento de propina. “Chama atenção no registro feito em vídeo
o momento em que a vítima entrega o dinheiro ao sargento Alves, sendo
possível identificar a cédula de dinheiro cuja numeração de série
termina em 0318030A. (...) As cédulas de dinheiro entregues ao sargento
Alves foram previamente fotocopiadas por Pedro Fabiano e o seu registro
encontra-se às fls. 13-15. Entre essas notas de dinheiro encontra-se uma
cédula de R$ 100,00 cuja numeração de série é A4747031803A”, apontou o
Ministério Público Militar nas alegações finais do processo.
Trecho de inquérito do Ministério Público Militar |
A embarcação havia sido abordada pela equipe comandada pelo sargento
Alves em 6 de julho de 2012, mas a ação não foi formalmente registrada
no livro de ocorrências. Isso, para o Ministério Público Militar, seria
uma prova de que houve omissão dolosa para permitir que o crime fosse
cometido. De acordo com os autos, o sargento Alves telefonou para o
dono da embarcação para fazer a cobrança. Foi Pedro Fabiano quem
procurou as autoridades para denunciar o caso. Outros dois militares,
acusados de também participar da cobrança e ser beneficiários da divisão
da propina, acabaram absolvidos no caso.
À Justiça, a defesa do sargento Alves diz que ele foi vítima de armação
feita pelo dono da embarcação, Pedro Fabiano, porque havia dito que
apreenderia a embarcação. A defesa sustentou ainda que a quebra do
sigilo telefônico não permitiu saber o conteúdo da conversa, por isso
não se comprovaria a cobrança de propina.
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