domingo, 22 de outubro de 2017

A corrupção veste farda: militares desviam dinheiro público como civis — TCU investiga centenas de casos
de desvio de dinheiro público dentro das Forças Armadas



Muitos cidadãos defendem uma nova intervenção militar no Brasil. O argumento de quem pede pela volta das Forças Armadas ao poder é o de que “não havia corrupção” na época da ditadura e os militares poderiam “dar um jeito” no Brasil. Registros da Procuradoria-Geral de Justiça Militar, porém, mostram que não é bem assim: militares desviam recursos públicos, fraudam licitações, pedem e recebem propina. Basta terem oportunidade e não temem punição.

Os registros da Procuradoria-Geral de Justiça Militar expõem os abusos com dinheiro público nas Forças Armadas. São processos pelo crime de peculato (desvio de dinheiro público em proveito próprio) e por corrupção ativa ou passiva — todos abertos nos últimos cinco anos. O material foi remetido ao Tribunal de Contas da União; investigadores da Corte estão destrinchando irregularidades encontradas nas três Forças, com prejuízos milionários aos cofres públicos. Os casos restringem-se a danos ao Erário superiores a R$ 100 mil.

Mais de 300 investigações estão em andamento no Tribunal de Contas da União (TCU) sobre irregularidades encontradas na Aeronáutica, no Exército e na Marinha. São 255 processos pelo crime de peculato (entre 2012 e 2017) e 60 por corrupção ativa ou passiva.

O valor estimado de prejuízo aos cofres públicos nesses principais casos é de R$ 30 milhões, mas, a depender do avançar das investigações, pode se revelar maior. O levantamento não inclui processos contra militares ajuizados na Justiça comum — os casos da Justiça Militar são de crimes que provocam prejuízo apenas às Forças Armadas. Num país acostumado a flagrantes de malas de dinheiro rodando com políticos e desvios na casa de bilhões na Petrobras, parece mixaria. Esses R$ 30 milhões são pouco mais que a metade da fortuna encontrada no apartamento associado ao ex-ministro Geddel Vieira Lima, apenas um entre mais de uma centena de investigados pela Operação Lava Jato. São valores bem mais modestos ainda que os registrados no sistema de propina da Odebrecht, como os R$ 300 milhões que a empresa afirma ter destinado ao PT para ajudar os planos do ex-presidente Lula. Mas é uma questão de escala. Os militares administram um orçamento anual de R$ 86 bilhões, quase tudo atrelado a salários e pensões; apenas R$ 7 bilhões são gastos em investimentos e estão, portanto, sujeitos a desvios como esses investigados. Militares não têm acesso aos maiores cofres do governo federal, não fazem campanha eleitoral e não têm conexões no Congresso para aprovar leis. Ou seja, têm menos oportunidades de fazer negociatas.

Antonio Hamilton Martins Mourã
Embora os casos não apontem um cenário de corrupção institucionalizada e generalizada, os processos trincam o argumento recentemente vociferado por apoiadores de uma estapafúrdia intervenção militar como solução para a crise atual, como defendido recentemente pelo general do Exército Antonio Hamilton Martins Mourão. Confortável, usando um uniforme repleto de medalhas no peito diante de uma plateia dócil em uma loja maçônica de Brasília, em 15 de setembro o general acenou com a possibilidade de intervenção militar para extirpar os corruptos da vida pública. “Ou as instituições solucionam o problema político, ou pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos de impor isso”, disse Mourão.

Ouvidas as palavras do general Mourão na maçonaria e de seus apoiadores, soa irônico que até a Lava Jato tenha pilhado militares em casos de corrupção. O vice-almirante da Marinha Othon Pinheiro da Silva, que comandou a estatal Eletronuclear, foi condenado a 43 anos de prisão por corrupção, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e organização criminosa nas obras da usina nuclear de Angra 3, acusado de receber R$ 4,5 milhões de propina. Sua defesa diz que os pagamentos eram por uma consultoria feita às empreiteiras antes de assumir a Eletronuclear.

Segundo o TCU, existem indícios de que as Forças Armadas não tomam as providências necessárias para recompor o prejuízo aos cofres públicos causados pela corrupção em suas fileiras. “Foi constatado que havia casos em que o Exército deveria ter instaurado a tomada de contas especial para apurar os fatos, e não o fez”, afirma o tribunal. Em março deste ano, o TCU abriu um processo para apurar “possíveis irregularidades relacionadas com a não instauração de tomadas de contas especiais para apurar dano ao Erário” e deu prazo de 180 dias para que o Comando do Exército apure o prejuízo causado pelos problemas na gestão do Hospital Militar de Área de Recife e em possíveis irregularidades em obras do Instituto Militar de Engenharia.

Entre maio de 2009 e março de 2010, a conta-corrente do coronel do Exército Odilson Riquelme, no Banco do Brasil, recebeu dois cheques no valor total de R$ 37.373,00. Os depósitos se repetiram nos meses seguintes. Os cheques foram emitidos pela empresa Sequipe, prestadora de serviços de quimioterapia ao Hospital Militar de Área de Recife (HMAR), onde Riquelme cuidava dos contratos. Os valores equivaliam a 10% dos pagamentos feitos à Sequipe pelos contratos com o hospital. Os investigadores do Ministério Público Militar (MPM) descobriram o esquema após denúncia de um ex-funcionário. Confirmou-se que o dinheiro — R$ 205 mil no total — havia sido pedido à empresa pelo então diretor do HMAR, coronel Francisco Monteiro. Ele alegou que seriam “doações” para o hospital. Mas cheques obtidos pelos investigadores mostraram que o dinheiro acabou em contas-correntes dos militares e de pessoas ligadas a eles, não no caixa do hospital.

O caso do coronel Riquelme está longe de ser uma exceção nas Forças Armadas Brasileiras. Embora persista o mito de que os militares são mais honestos do que os civis no trato com a coisa pública, não há evidência empírica disso. Tanto militares quanto civis desviam recursos públicos, fraudam licitações, pedem e recebem propina. Não há estudos que indiquem qualquer distinção entre a escala de corrupção nos mundos civil e militar. Pelas teorias mais recentes na literatura sobre corrupção, duas coisas, em especial, tendem a aumentar as chances de tunga aos cofres públicos: oportunidades para roubar e a percepção de que não haverá punição. Ambas existem, no Brasil, entre militares e civis. Estes não são especialmente desonestos. Aqueles não são especialmente probos.



O marechal Castelo Branco (de terno) primeiro presidente do regime militar em São Paulo, em 1964


Oficial do Exército é condenado por desvio — o tenente-coronel Márcio Pires foi acusado de vender 80 toneladas de alimento e receber pagamento na própria conta bancária — uma fiscalização constatou um rombo no estoque de alimentos do Depósito de Subsistência de Santa Maria, Rio Grande do Sul, do Exército brasileiro. A quantidade existente de carne bovina, frango, carne suína, feijão-preto e leite em pó era muito menor do que estava registrado na contabilidade. O balanço constatou que mais de 80 toneladas de alimentos tinham sumido. Após investigação, o Ministério Público Militar colheu relatos de que os alimentos eram desviados por ordens do ex-tenente-coronel Márcio Pires em benefício de terceiros. A quebra de sigilo detectou diversos depósitos diretamente na conta-corrente do próprio Pires e, segundo testemunhas, eram pagamentos pelo material desviado. Um laudo financeiro da Polícia Federal apontou que a evolução patrimonial de Pires era incompatível com seu salário no Exército, sua única fonte de renda declarada.
Diante desses fatos, Pires foi condenado pelo Superior Tribunal Militar (STM) a quatro anos e oito meses de cadeia pelo crime de peculato, por “ter praticado contínuos desvios de gêneros alimentícios, valendo-se das facilidades advindas das funções que exercia, com intuito de enriquecer ilicitamente”. O STM decidiu ainda por uma punção extra: em 11 de maio deste ano, Pires foi considerado “indigno para o oficialato” e perdeu seu emprego e sua patente de tenente-coronel. Raros são os casos em que o STM decide por pena tão dura, porque é necessário que o réu tenha sido condenado a uma pena superior a dois anos e que não caiba mais nenhum recurso contra a condenação.
De acordo com a decisão do tribunal, as ações do tenente-coronel Pires “macularam não só a sua honra individual, mas também o pundonor militar, o decoro da classe e a imagem da própria Força a que pertence, atingindo diretamente os valores de condutas moral e profissional inerentes às suas obrigações como Oficial do Exército Brasileiro”. Nos autos, a defesa argumentou que, no ano das irregularidades, Pires não era responsável pelo depósito de alimentos e que suas contas foram integralmente aprovadas pelos órgãos fiscalizadores do Exército.

O STM também decidiu, no mês passado, a perda do emprego e da patente do ex-tenente coronel Hélio Cardoso Câmara depois que foi condenado a seis anos de reclusão por desvios de recursos — estimados em 538 mil reais — da 1ª Divisão de Levantamento do Exército, comprovados pela sua movimentação financeira acima dos rendimentos. A defesa do ex-tenente coronel Hélio diz que os recursos passaram por curto período por sua conta, mas não foram usados em benefício pessoal.   

Pagamento de propina em dinheiro vivo para sargento da Marinha foi filmado por dono de barco, que diz ter sido chantageado por militar — a investigação até pareceu coisa da Operação Lava Jato: teve filmagem de uma entrega de dinheiro, com notas previamente registradas e fotografadas. Num dos pontos turísticos de Belém, a Feira do Açaí, uma ação registrou em vídeo o segundo-sargento da Marinha Nilton Alves recebendo um envelope com propina de R$ 500, com cinco notas de R$ 100 fotografadas antes. O pagamento era em troca da liberação de uma embarcação que havia sido apreendida por sua equipe de fiscalização marítima, após constatar que estava sem a documentação necessária.
No dia 30 de agosto, o Superior Tribunal Militar condenou, em segunda instância, o sargento Alves a uma pena de dois anos e quatro meses de prisão pelo crime de concussão, previsto no Código Penal Militar. A prova cabal foi filmada por uma microcâmera instalada no corpo de Pedro Fabiano Pereira, dono da embarcação que foi ao encontro do sargento para fazer o pagamento de propina. “Chama atenção no registro feito em vídeo o momento em que a vítima entrega o dinheiro ao sargento Alves, sendo possível identificar a cédula de dinheiro cuja numeração de série termina em 0318030A. (...) As cédulas de dinheiro entregues ao sargento Alves foram previamente fotocopiadas por Pedro Fabiano e o seu registro encontra-se às fls. 13-15. Entre essas notas de dinheiro encontra-se uma cédula de R$ 100,00 cuja numeração de série é A4747031803A”, apontou o Ministério Público Militar nas alegações finais do processo.



Trecho de inquérito do Ministério Público Militar


A embarcação havia sido abordada pela equipe comandada pelo sargento Alves em 6 de julho de 2012, mas a ação não foi formalmente registrada no livro de ocorrências. Isso, para o Ministério Público Militar, seria uma prova de que houve omissão dolosa para permitir que o crime fosse cometido. De acordo com os autos, o sargento Alves telefonou para o dono  da embarcação para fazer a cobrança. Foi Pedro Fabiano quem procurou as autoridades para denunciar o caso. Outros dois militares, acusados de também participar da cobrança e ser beneficiários da divisão da propina, acabaram absolvidos no caso.
À Justiça, a defesa do sargento Alves diz que ele foi vítima de armação feita pelo dono da embarcação, Pedro Fabiano, porque havia dito que apreenderia a embarcação. A defesa sustentou ainda que a quebra do sigilo telefônico não permitiu saber o conteúdo da conversa, por isso não se comprovaria a cobrança de propina.




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