Juiz popular e trabalhador faminto são manifestações de um Brasil arcaico
Num instante em que a política se eterniza como um conto do vigário em
que o país não se cansa de cair, dois brasileiros nos ajudam a
compreender melhor a vocação nacional para o fracasso: o eletricista
faminto e o juiz popstar. Unidos no noticiário dos últimos dias, Mário
Ferreira Lima e Sérgio Moro ilustram as duas margens do retrato
nacional. Num extremo, a pobreza que furta para comer. Noutro, a Justiça
que mastiga corruptos e corruptores. Ao fundo, as crises que expõem a
amplitude da vista curta que impele o Brasil a fazer do pior o melhor
que pode.
Mário Lima é um pobre de mostruário. Desempregado, sustenta um filho de
12 anos com os R$ 70 que recebe mensalmente do Bolsa Família. Entrou num
mercado imaginando que o benefício fora depositado em sua conta. Ao ser
informado pelo caixa de que não dispunha de saldo, tentou furtar uma
peça de carne para dar de comer ao filho. No desespero, esqueceu que, no
Brasil, a cadeia é o habitat natural dos ladrões de galinha.
Sérgio Moro é um ponto fora da curva na magistratura de primeiro grau.
Titular de uma Vara periférica de Curitiba, tocava seus processos
distraído quando esbarrou no petrolão. Ao receber da Polícia Federal e
da Procuradoria a confirmação dos indícios de que a Petrobras era
assaltada, mandou enjaular corruptos e corruptores. No entusiasmo, deu
de ombros para a máxima segundo a qual, no Brasil, ladrão de colarinho
branco não vai em cana. Virou uma celebridade instantânea.
Furtar alguns quilos de carne exige planejamento. O ladrão precisa
escolher o mercado. Depois, tem de definir o método. Onde acondicionar a
carne para a fuga? Como escapar das câmeras, se existirem? Uma vez
diante da mercadoria, como evitar que atendentes, seguranças e os outros
clientes percebam a supressão? Sem formação superior, mal alimentado e
sem vocação para o crime, Mário Lima foi flagrado. Levaram-no para a delegacia.
Assaltar a Petrobras é bem mais simples. É como no futebol. Tem toda uma
estrutura anterior para preparar o gol. O presidente da República
delega aos partidos a escalação do time. As legendas acomodam
funcionários gananciosos no meio de campo. Esses funcionários armam
todas as jogadas. E o cartel de empreiteiras entra em campo apenas para
fazer o gol — ou cometer o crime. Ao final, divide-se a bolada. Os
salteadores da Petrobras tiveram o azar de cair nas mãos do juiz Moro,
um estudioso aplicado da italiana Operação Mãos Limpas.
Ao comparecer ao lançamento de um livro em São Paulo, Moro foi tratado como um astro.
Por quê? Simplesmente porque ousou injetar uma dose de anormalidade na
vida normal do Brasil. O juiz cumpriu a lei. Espanto! Ele autorizou a
devassa nos negócios dos criminosos limpinhos. Pasmo!! Ele manteve na
carceragem da PF por cinco meses a nata do baronato das empreiteiras.
Estupefação!!! O STF já livrou a turma da construção pesada do xilindró.
Mas ainda não teve a coragem de devolver os suspeitos às ruas.
Mandou-os para a prisão domiciliar.
A plateia estava acostumada com aquele outro Brasil em que só iam para a
cadeia pobres-diabos como o eletricista Mário Lima. Mas esse país já
não é o mesmo. Noutros tempos, não convinha conversar com um policial a
não ser em legítima defesa. Hoje, já se encontram agentes como os que
prenderam o “ladrão” famélico.
Os policiais tiveram paciência para ouvir o drama de Mário Lima. Uma
policial pagou-lhe a fiança. Desautorizou a divulgação do seu nome.
Cristã, ajuda o próximo sem interesse pela publicidade. Outros,
policiais cotizaram-se para encher a geladeira do desempregado.
Decidiram levar os lábios ao trombone por acreditar que a exposição do
caso poderia render um emprego para Mário Lima. Sim, ele quer trabalhar.
Retorne-se, por oportuno, ao início do texto: num instante em que a
política se eterniza como um conto do vigário em que o país não se cansa
de cair, o eletricista desesperado e o juiz desassombrado ajudam a
entender o país. Enquanto esses dois personagens forem tratados como
excentricidades, o Brasil não terá jeito. No dia em que Sérgio Moro
deixar de ser uma exceção, a corrupção graúda talvez não coma todo o
queijo. E o Estado talvez pare de distribuir para gente como Mário Lima
apenas os buracos. Até lá, juiz popular e trabalhador faminto não serão
senão manifestações de um Brasil arcaico.
Mário Lima, a pobreza que furta para comer.
Sérgio Moro, simplesmente porque cumpriu a lei, foi tratado como um astro.
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