Como o setor privado pensa o Fies 2.0
Elizabeth Guedes |
"O Fies cresceu de forma descontrolada. Algumas escolas sem escrúpulos
aumentaram as mensalidades, fizeram caixa com o Fies. Também teve muita
gente que trocou de carro, viajou pra Nova York porque não precisava
pagar faculdade do filho. Todo mundo que pedia, conseguia o Fies, o que
acabou redundando nesse desastre". O desabafo eloquente não vem do
governo e, sim, da representante dos maiores grupos privados de ensino
superior, Elizabeth Guedes, que desde as mudanças no Fies passa três
dias da semana em Brasília para negociar com os ministérios da Educação,
Fazenda, Planejamento, políticos e FNDE o futuro do financiamento
estudantil.
A estadia de Elizabeth em Brasília não é à toa. O setor só soube das
novas regras do Fies pelo Diário Oficial na última semana de dezembro e,
desde então, várias outras alterações têm sido anunciadas a
conta-gotas. O MEC prepara um pacote de mudanças e, em paralelo, o setor
também elabora um novo modelo de financiamento – batizado de Fies 2.0 –
a ser apresentado ao governo em junho.
Como diretora-executiva da Associação Brasileira para o Desenvolvimento
da Educação Superior (Abraes), Elizabeth representa os grupos Anima,
DeVry, Estácio, Kroton, Laureate e Ser Educacional.
Veja os principais pontos da entrevista que ela concedeu:
Quais são as propostas do setor privado para o Fies?
Elizabeth Guedes : Contratamos o Samuel Pessôa [economista do
Ibre-FGV ] para desenvolver um novo modelo e aprimorar o Fies. Vamos
propor que o Fies seja só para quem tem renda de três ou quatro salários
mínimos, mas esse valor não está fechado. A ideia central é que o Fies
seja uma parceria público-privada, com recursos da União para quem
realmente precisa e não para financiar a classe média. O governo
financiaria no máximo 75% da mensalidade e para o restante entra o
crédito privado ou o contrário. As escolas também precisam fazer a sua
parte, reduzindo mensalidade ou dando crédito para quem precisa.
Como seria esse crédito privado estudantil?
Elizabeth : A gente quer trazer bancos privados, criar outros
instrumentos como fundos específicos de ensino ou letras de crédito
estudantil. Temos letras de crédito agrícola e imobiliária. Por que não
podemos ter para educação? Vamos conversar com bancos e já pedi uma
reunião na Febraban. Precisamos de mecanismos que não onerem o Tesouro
com inadimplência. Hoje, o FGDUC [fundo garantidor do Fies] tem R$ 2
bilhões para uma dívida de R$ 20 bilhões. Deste jeito, o sistema não
fica de pé.
Há proposta de mudar a taxa de juros e o prazo do Fies?
Elizabeth : Sim. Juros de 3,4% ao ano são muito baixos mesmo, mas ainda
não temos qual patamar seria adequado. De qualquer forma o governo tem
que subsidiar juros para a baixa renda. O prazo de amortização também
não pode ser de 12 anos e mais 18 meses de carência. Nos financiamentos
privados, o aluno paga enquanto estuda e logo que se forma. Defendemos
um modelo em que o pagamento da dívida seja atrelado à renda, ou seja,
quem ganha mais, paga mais. Precisa ser um modelo de financiamento
sustentável porque não dá para o aluno se formar devendo R$ 40 mil ou R$
50 mil. O sujeito nunca vai pagar isso. Não dá pra ter um jovem
formado, empregado e infeliz porque não consegue casar, comprar carro ou
casa porque está devendo a alma para a escola e governo.
Nos últimos anos, as escolas incentivaram a adesão ao Fies para
reduzir inadimplência e evasão. Esse incentivo não foi uma das razões do
inchaço do programa?
Elizabeth : Claro que teve instituição que fez isso e hoje tem
60% da sua base de alunos com Fies, um absurdo. O Fies foi feito para
trocar bolsa de estudo por imposto. Então, o Fies deveria ser
equivalente a no máximo o montante de impostos. Não vejo problemas em
incentivar o aluno a aderir ao Fies desde que esteja dentro desse
patamar de impostos. Discordo que o Fies está inchado porque há 7
milhões de pessoas com segundo grau que não estão no ensino superior. O
que houve foi um descontrole, uma falta de fiscalização por parte do
FNDE.
Mas há poucos dias o próprio Samuel Pessôa disse que 70% dos alunos não precisavam do Fies.
Elizabeth : O Fies cresceu de forma descontrolada. Algumas
escolas sem escrúpulos aumentaram as mensalidades, fizeram caixa com o
Fies. Também teve muita gente que trocou de carro, viajou pra Nova York
porque não precisava pagar faculdade do filho. Todo mundo que pedia
conseguia o Fies, o que acabou redundando nesse desastre. O Fies foi
desvirtuado por maus mantenedores, que são minoria.
Como vê a ideia de alunos com menos de 450 pontos no ENEM migrarem para cursos técnicos?
Elizabeth : A Abraes não está questionando a exigência dos 450
pontos para ter direito ao Fies porque pode parecer que não estamos
preocupados com a qualidade do ensino. Mas acho um absurdo não permitir
que o aluno pobre, cuja educação básica pública foi fraca, faça um curso
de ensino superior com financiamento do governo. É uma visão muito
“eugenista”, de querer tirar os burros da escola ou de achar que lugar
de burro não é na escola. Escola é lugar para, principalmente, aprender.
E se as faculdades privadas quiserem assumir o risco de pegar um aluno
fraco? Nós damos aulas de reforço de português e matemática. É nossa
obrigação? Não é, mas é esse aluno que a gente recebe e não podemos nos
furtar de ensinar porque lá na frente esses alunos fazem o Enade [exame
do MEC que mede a qualidade dos cursos de ensino superior].
O MEC sinalizou que pretende priorizar os cursos de engenharia, saúde e formação de professores no Fies.
Elizabeth : O programa estudantil é do governo, que tem total
autonomia para direcionar os recursos. Mas acho que as pessoas têm suas
vocações e acho ruim o pobre ter que escolher uma profissão de acordo
com as necessidades de mercado.
Como está a relação do setor com o MEC?
Elizabeth : O ministro [Renato] Janine é muito transparente. O
relacionamento é bom. O problema é que mais de 20 mil alunos renovaram
seus contratos de Fies por meio de liminares judiciais, mas as
instituições não receberam. Além disso, ainda não temos uma garantia
formal de como será o pagamento das quatro parcelas de Fies que não
serão quitadas neste ano. Jogaram pra frente, é uma ´pedalada´ de R$ 2,4
bilhões. Não tem portaria informando que os pagamentos serão nos
próximos três anos, como eles dizem. Pedi ao FNDE para formalizar, ao
menos, num papel timbrado, mas não querem. E já viu, palavras o vento
leva.
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