Há 30 anos, Tancredo Neves ganhava uma presidência que jamais assumiria
O presidente Tancredo Neves (centro), tendo ao seu lado o vice, José Sarney. |
Há 30 anos, em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves se elegia
presidente numa votação do Congresso e encerrava formalmente a série de
presidentes militares pós-golpe de 1964. Uma vez que Tancredo jamais
chegou a assumir o cargo, é fácil subvalorizar a relevância histórica
que o evento teve para o Brasil, mas o atual cenário político foi
profundamente afetado pela eleição de Neves.
A vitória de um presidente civil era quase certa depois da derrota da
emenda que propunha eleições diretas para presidente em 1984. A emenda Dante de Oliveira
mobilizou o país mas esbarrou num Congresso amplamente conservador.
Essa mobilização, contudo, é basicamente a síntese da organização
política do país pós-Sarney. No mesmo palanque, os hoje inimigos
viscerais de PSDB e PT fizeram campanha pela emenda. Lula, Fernando
Henrique Cardoso e outros luminares dos dois partidos pareciam
politicamente muito mais próximos do que as hostilidades de hoje levam a
crer.
“A eleição de Tancredo Neves foi um momento decisivo na transição para o
regime democrático (a despeito da rejeição das eleições diretas um ano
antes, em 1984). O PMDB se consolidava após o até então esquema
bipartidário do período militar (MDB/Arena) como mais significativa
“oposição”, chegando ao poder em um sistema político ainda restrito pelo
regime autoritário”, explica o professor Rúrion Melo, do Departamento
de Ciência Política da USP.
“Ainda que Sarney (indicado pelo PFL) tenha de fato, como vice de
Tancredo, assumido a presidência, isso significou na verdade a
dependência de Sarney em relação ao PMDB. Daí em diante o PMDB
certamente se consolida como partido mais influente na dinâmica entre
polos dos governadores e polo parlamentar (lembrando de nomes tais como
Ulisses Guimarães e Orestes Quércia). Isso marcará decisivamente a
atuação mais conservadora da dinâmica partidária no sistema político
democrático brasileiro, a capacidade de certos partidos, ligados ao modo
de atuar representado pelo PMDB, de conquistar posições estratégicas
sólidas no Estado como um todo”, continuou.
A escolha de Tancredo como candidato para disputar com Paulo Maluf a
eleição indireta também tem forte reflexo no cenário atual. Tancredo, um
oposicionista ‘light’ tinha criado seu próprio partido após o fim do
bipartidarismo, o PP, que se fundiu com o PMDB. Deste embate, é possível
ressaltar resquícios da organização política da época nos tempos
atuais, de acordo com Rúrion Melo.
“Se, de um lado, diminuiu a força direta dos herdeiros do extinto PFL (a
eleição do ano passado foi humilhante para o DEM), a influência direta
do PMDB no plano parlamentar, municipal e estadual simplesmente
aumentou. O que fica são os traços de um modo de atuar no interior do
sistema político cada vez mais presente, que Marcos Nobre chamou
recentemente de “pemedebismo”, um traço de nossa cultura política
conservadora, embora em contextos de organização democrática. Este
conjunto de práticas (o pemedebismo) ultrapassou os limites da
redemocratização e se enraizou em nossa cultura política e no modo de
funcionamento inclusive de nossa lógica pluripartidária”, disse.
Expulsões no PT
Tancredo não era o maior nome da oposição nacional, mas tinha trânsito
também em alas do governo – fato que garantiu uma vitória tranquila
sobre Maluf com a composição da “Aliança Democrática”, uma frente
suprapartidária formada por velhos e novos opositores do regime militar.
A exceção foi o PT, que orientou todos seus parlamentares a se abster
do voto numa eleição indireta, chegando a expulsar os três deputados que
votaram em Tancredo. Este fato, entretanto, contrasta com o que é a
legenda atualmente, segundo o professor da USP.
“Provavelmente André Singer está correto ao dizer que o PT tem duas
almas. O “espírito do Sion” marcou o caráter mais radical do partido.
Isso justificou na época a abstenção do PT como forma de protesto contra
as eleições indiretas e contra o mero arranjo da cúpula conservadora.
Atualmente, trata-se do “espírito do Anhembi”, sem tais radicalismos”,
explica Rúrion Melo.
“O PT, ainda preocupado com as questões “sociais” e redistributivas,
está comprometido hoje com a estabilidade e com a ordem econômica
vigente (abandonando de vez a postura anticapitalista). Do ponto de
vista político, isso significa um extremo pragmatismo e flexibilização. É
impossível pensar agora a atuação do PT no sistema partidário sem o
PMDB. Embora não seja de fato apenas o “fisiologismo” que assegura o
êxito do PT no poder (muito disso depende das suas políticas sociais, do
aumento do emprego formal e do conjunto de estímulos no segundo mandato
de Lula), sua base aliada é ampla o suficiente para mantê-lo no jogo.
Além disso, a composição desta base é bastante conservadora (com
partidos como PMDB, PP, PSD, PR etc.), algo impensável há 30 anos”,
completou.
O trânsito de Tancredo com a base fisiológica do governo garantiria
espaço para uma oligarquia de políticos que ainda estão no poder. Com a
iminência da derrota do governo, José Sarney liderou a formação de uma
‘dissidência’ do PDS, o PFL, que lhe valeria a vaga de candidato a
vice-presidente e, em última análise, os cinco anos de presidência. A
eleição de Tancredo também trouxe à visibilidade nacional pela primeira
vez o seu neto Aécio, candidato derrotado na última corrida
presidencial, a mesma em que outro personagem da eleição de Tancredo,
José Sarney, foi personagem, só que numa posição de declínio e saída da
vida pública.
Corpo de Tancredo Neves chega ao Palácio do Planalto, no dia 13 de maio de 1985. |
E se Tancredo pudesse ter exercido seu mandato?
Pouco se conjectura sobre como teria sido seu mandato uma vez que a base
política do governo teria sido a mesma, mas o entorno do episódio da
sua eleição é inegavelmente relevante para entender a política no Brasil
de hoje.
"Se você pensa em termos históricos, nada seria diferente em curto
prazo. Para a lógica pemedebista da década de 1980, tudo andava bem. PFL
e PMDB tiveram sucesso expressivo nas eleições municipais de 1985,
principalmente nas capitais, e em 1986, nas eleições para os governos
estaduais, o PMDB elegeu governadores de todos os Estados (menos
Sergipe), sem falar no plano parlamentar”, conta Rúrion.
"Tancredo (com uma posição, diga-se, político-ideológica diferente da de
Sarney) não teria alterado substancialmente a disposição dos
mecanismos, das estratégias e administração dos conflitos que
caracterizou o modelo político conservador institucionalizado”,
completou.
Acometido de dores abdominais na véspera da posse, 14 de março, Tancredo
foi internado com uma diverticulite que se complicou e o levou à morte
em 21 de abril. Seu falecimento marca o início do período mais longo de
estabilidade institucional no Brasil, mas cuja maturidade partidária
ainda está distante.
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