Realidade ou Lenda
Por que existe o narcotráfico? Eis a pergunta singela que o general
Hamilton Mourão, vice na chapa de Jair Bolsonaro, deveria fazer aos seus
botões. O tráfico existe porque há um mercado consumidor, eis a
resposta óbvia. Vende-se cocaína no Brasil porque há quem a aspire.
Vende-se muita cocaína, porque há quem tenha dinheiro para sorvê-la em
grandes quantidades.
A meninada das comunidades pobres vira “avião” de traficante porque
mamãe, vovó, papai e vovô são abandonadas à própria sorte pelo Estado,
incapaz de prover o básico: educação, segurança e emprego. A tese de que
famílias da periferia não conseguem cuidar dos filhos é prima-irmã da
máxima segundo a qual pobre não sabe votar. Graças a essa premissa, o
país foi governado por cinco generais escolhidos sem a interferência
popular.
O chefe das Forças Armadas, segundo a Constituição, é o presidente da
República. É ele, e somente ele, portanto, quem em nome delas pode falar
sobre temas políticos de repercussão geral. Aos comandantes das três
armas — Exército, Marinha e Aeronáutica —, cabe falar sobre assuntos
administrativos e aqueles diretamente afeitos aos cargos que ocupam.
Militar não é igual a civil — O que os distingue não é só a farda que um
veste e o outro não. Militar tem acesso a armas pesadas, pilota
brucutu, maneja tanques e é treinado para matar. Se um deles fala
qualquer coisa, soa diferente do civil que diga o mesmo. Porque um tem a
força capaz de pulverizar literalmente quem quer que seja. O outro, só a
força da palavra e do voto.
Faltam menos de 20 dias para o desfecho do primeiro turno da eleição
presidencial. E são cada vez mais fortes os sinais de que o segundo
turno pode ser extremista. De um lado, Bolsonaro. Do outro, Haddad.
Esboça-se uma polarização sui generis: Hospital X Cadeia.
Numa divisão grosseira, o eleitorado trincou em três pedaços. Um odeia o
PT, tem ojeriza a Lula, e encontrou no ultra-conservadorismo de
Bolsonaro a melhor tradução para sua raiva. Outro lembra com saudade do
governo Lula, fecha os olhos para a decomposição ética e vota em quem o
presidiário indicar. Um terceiro naco, no centro, pulveriza-se. Oscila
entre os outros candidatos, a dúvida ou o voto em ninguém.
Suprema ironia: os dois personagens que mais movimentam o cenário
eleitoral estão imobilizados. Um, hospitalizado, passa mais tempo
deitado do que em pé. Comunica-se por meio de vídeos de UTI. Outro,
encarcerado, teve o horizonte reduzido aos 15 m² de uma cela especial.
Envia correspondências do cárcere. O risco que o país corre é o de sair
da disputa presidencial dividido e, pior, agarrado a dois sinais
trocados.
A turma que detesta Lula confunde populismo radical com solução. A banda
que tem devoção pelo pajé do PT confunde urna com tribunal. O problema é
que radicalismo não produz solução, gera mais radicalismo. E o voto,
embora possa anestesiar culpas, não absolve réus. Os dois tipos de
confusão têm algo em comum. Ambos costumam conduzir à decepção.
Uma semana depois de ser confirmado como presidenciável do PT, Fernando
Haddad exercitou sua lulodependência em nova visita ao
mentor-presidiário na segunda-feira (17.set.2018). O hipotético cabeça
da chapa petista foi receber instruções de Lula, o cérebro de sua
campanha, na cela da superintendência da Polícia Federal, em Curitiba.
Nos últimos 40 dias, Haddad visitou a cela especial de Lula meia dúzia
de vezes. Seu ingresso nas dependências da PF é assegurado por uma
farsa. Advogado bissexto, Haddad revalidou seu registro profissional
para ser incluído no rol de defensores de Lula. Nas suas visitas, cuida
de política, não da defesa do preso.
Graças à complacência das autoridades judiciárias, a cela de Lula
tornou-se o comitê central da campanha presidencial do PT. Mal
comparando, Lula age como os líderes de facções criminosas. Condenado a
12 anos e um mês de reclusão por corrupção e lavagem de dinheiro,
transformou a cadeia em escritório político.
A urna eletrônica começou a ser utilizada massivamente no Brasil a
partir das eleições municipais de 1996. Somos o único país do mundo que
possui um sistema de eleições 100% eletrônico.
Bolsonaro entrou na vida pública em 1988 elegendo-se vereador do Rio
pelo Partido Democrata Cristão. Nas eleições de 1990 elegeu-se deputado
federal. Reelegeu-se mais quatro vezes. É freguês da urna eletrônica há
20 anos, sem jamais contestá-la antes. Foi filiado a nove partidos.
Elegeu um filho deputado federal e outro vereador. A ex-mulher é
candidata a deputada federal. Só agora Bolsonaro reclama?
Talvez o mais importante das últimas décadas seja o fato de que perdemos
qualquer vestígio de inocência. Acreditamos em nada. Duvidamos de tudo.
Optamos pela descrença temperada pelo cinismo. Faz tempo que a gente
não sonha. Não imagina a vida daqui a alguns anos. Não planeja. Não tem
controle (ainda que ilusório) do próprio destino. Fazemos tudo por
hábito alegando falta de opção. Como se opções nascessem do nada.
Minuto a minuto, dia a dia, semana a semana, mês a mês, ano a ano, fomos
destruindo o pouco que existia da nossa crença nas instituições.
Pasmos, vagamos por quase quarenta anos de democracia em deserto de
ideias e abundância de maldade insolente.
Olhando para frente, ninguém vê a luz no fim do túnel. Alias, nem mais
sabemos se estamos em um túnel. Parecemos acreditar, resignados, que
esse é nosso destino já escrito. No faroeste digital que virou a
política tropical, todos culpam a todos. Dizem nada. Como facções
organizadas, embarcam em debates inúteis onde ninguém ouve, mas todos
falam.
Ninguém mais argumenta como as coisas podem melhorar. Nem se acredita
que vão. A gente não mais escolhe o melhor. Fica contente em escolher o
menos ruim. E satisfeito com a ideia de que as outras escolhas talvez
sejam piores.
O Brasil virou lugar onde acontece de tudo. Mas sempre dá em nada.
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