Investigações sobre o caso Alstom mostram que a operação começou antes do governo tucano e envolveu até um parente do jurista Hélio Bicudo
Os primeiros indícios de que agentes públicos brasileiros recebiam
propina da multinacional francesa Alstom e de que eram parte de um
esquema mundial de corrupção vieram à tona em 1997. A principal prova
era um memorando interno da empresa, um manuscrito em que apareciam três
codinomes ligados a três indicações de percentuais. O memorando é
essencial para entender o funcionamento do esquema que pagou, de acordo
com o Ministério Público Federal, o equivalente a R$ 23,3 milhões (em
valores atuais) em propina a agentes públicos do Estado de São Paulo. Em
troca da propina, segundo as acusações, a Alstom conseguiu contratos
com estatais paulistas para ampliar e construir subestações de energia
que abasteceriam o metrô. Dois dos codinomes da corrupção foram
rapidamente desvendados. O primeiro, a sigla “C.M.”, referia-se ao
lobista Cláudio Mendes. O segundo nome, “Splendor”, não era um codinome,
mas uma empresa de consultoria que trabalhava para a Alstom. O terceiro
se tornou um grande mistério: “Neves”. Quem era “Neves”? Até
recentemente, não se sabia.
Num depoimento para autoridades suíças, o ex-executivo e consultor da
Alstom Michel Cabane desvendou o mistério. Ele se devia, em parte, à
caligrafia do autor do memorando. O nome, na verdade, não era “Neves”,
mas “Neveu”, ou sobrinho em francês. “Neveu” era Mário Bicudo Filho, um
ex-funcionário da Companhia Energética de São Paulo (Cesp) que já
morreu. Essa descoberta levou a outra: o esquema Alstom não começou no
governo tucano – o domínio do PSDB em São Paulo se iniciou com a eleição
de Mário Covas em 1994 –, mas bem antes, durante as gestões de Orestes
Quércia (1986-1990) e Luiz Antonio Fleury Filho (1991-1994). Mário
Bicudo atuava nesse período, assim como o lobista Cláudio Mendes. Se
Mário Bicudo era o sobrinho, quem era o tio? A resposta, confirmada pelo
depoimento: o tio de Mário Bicudo era o jurista, ex-procurador e
ativista dos direitos humanos Hélio Bicudo. Nos documentos da Alstom,
ele aparece identificado pelo codinome “Tonton” – titio, em francês.
Cabane disse aos procuradores suíços que Hélio Bicudo esteve na folha de
pagamentos da Alstom. Segundo Cabane, Bicudo recebia por ser um
“patrocinador” da Alstom dentro do governo. Cabane disse ainda às
autoridades suíças que Hélio Bicudo não participou do “aditivo 10 do
projeto Gisel” – nome pelo qual é conhecida, na investigação, a propina
paga em troca de prestação de serviços. Seus préstimos foram exercidos
antes. Outro depoimento esclarece os laços entre a Alstom e Hélio
Bicudo. O ex-consultor da Alstom Jean-Pierre Courtadon disse a
promotores paulistas que “Tonton” – o titio – era uma espécie de
“conselheiro informal da Cegelec” (empresa que pertenceu ao grupo
Alstom) e era “amigo da diretoria da empresa”. De tão estimado, ganhava
“passagens aéreas para visitar a França”. A ligação de Hélio Bicudo com o
setor elétrico remonta à década de 1960. Durante o governo Carvalho
Pinto (1959-1963), ele presidiu a estatal Centrais Elétricas de
Urubupungá (Celusa).
Ex-procurador de Justiça, com um currículo de 32 anos no Ministério
Público paulista, Hélio Bicudo fez fama pela forma com que enfrentou o
Esquadrão da Morte durante a ditadura militar. O grupo, liderado pelo
ex-delegado Sérgio Paranhos Fleury, executava suspeitos de crimes. Suas
denúncias levaram agentes do regime à prisão. Paralelamente ao cargo de
procurador, que tem entre suas atribuições fiscalizar irregularidades
com dinheiro público, Hélio Bicudo trabalhou para a Alstom. O próprio
Hélio Bicudo confirmou a informação em testemunho ao MP, em setembro de
2013.
No depoimento, Hélio Bicudo disse que o primeiro contato com a Alstom
ocorreu na década de 1970. Na ocasião, ele afirmou que foi procurado
para prestar consultoria jurídica na área de licitações. Disse que não
lembrava dos serviços prestados, mas afirmou que tinham ligação com a
estatal Cesp. Questionado se tinha conta no exterior, Hélio Bicudo
afirmou ser possível, “pois recebia da Alstom mediante remessas
bancárias internacionais”. Segundo promotores envolvidos na
investigação, há indícios de que Hélio Bicudo tenha praticado, ao menos,
tráfico de influência – crime prescrito pelo tempo e pelas mudanças na
legislação. O advogado de Hélio Bicudo, Claudio José Langroiva, disse
que seu cliente já prestou os esclarecimentos aos promotores e que, no
depoimento, afirmou que, no período da consultoria, não havia
impedimentos legais para que integrantes do MP advogassem.
A partir do desvendamento do codinome “Neves”, ou “Neveu”, os
investigadores começaram a entender o caso Alstom antes das gestões
tucanas. O primeiro contrato do aditivo que se tornou alvo de ação na
Justiça Federal ocorreu em junho de 1990. Segundo ex-consultores da
Alstom, ao menos três pessoas próximas à gestão peemedebista procuraram a
empresa para acelerar o projeto em troca de propina. Segundo o
depoimento dos representantes da Alstom, a primeira oferta partiu do
ex-secretário de Energia da gestão Quércia, João Oswaldo Leiva, que
pediu 10% do valor total do aditivo. Depois, segundo o mesmo depoimento,
Mario Bicudo Filho, ex-funcionário da Cesp, solicitou 8,5% – e chegou
até a selar um acordo de “consultoria” com a Alstom por escrito, em 20
de abril de 1994. Pelo documento, redigido em francês, receberia a
“comissão” se tirasse o aditivo do papel até o último dia de 1994,
quando o PMDB passaria o comando do Estado ao PSDB.
Por último, relatam no processo os representantes da Alstom, a companhia
foi procurada por Cláudio Mendes, o “C.M.”, que exigiu 7%. Ele
formalizou um acordo com a Alstom para receber a “comissão” por meio da
empresa Santo Trading, controlada por ele e sediada na Irlanda. Mendes
não foi localizado pela reportagem. Em depoimento ao MP, disse que nunca
teve contas ou empresas no exterior nem ouviu falar de projeto Gisel.
Negou também ser lobista. Procurado pela reportagem, o ex-governador
Fleury diz não se lembrar de Mendes nem de Mário Bicudo, apenas do
político João Leiva. Afirma também que “não ocorreram fraudes nem
irregularidades para financiar caixas de campanha em seu governo”.
Na Justiça, Mendes reafirma constantemente que não recebeu propina. Os
recursos provavelmente não chegaram mesmo. É que, assim como “Neveu” ou
Leiva – morto em 2000 –, ele dependia de que a operação se efetivasse
até o fim do governo do PMDB. Nenhum banco concordou em financiar o
projeto. Na época, o Brasil ainda amargava a falta de credibilidade
pós-moratória perante o mercado internacional, e isso abalava a
confiança nas estatais. Os desembolsos da Alstom relacionados ao aditivo
10 só começaram efetivamente em outubro de 1998. Foi quando o governo,
administrado por Mário Covas (PSDB), tirou o projeto do papel. De acordo
com Cabane, houve uma corrida contra o tempo – de corruptos e
corruptores – para começar o projeto antes das privatizações das
estatais paulistas de energia. De acordo com o Ministério Público
Federal, a Alstom distribuiu o suborno a agentes públicos paulistas até
2002. Procurada pela reportagem, a Alstom disse: “A empresa informa que
colabora com as autoridades sempre que solicitada, mas o processo
mencionado é sigiloso, e o acesso não nos foi concedido. A empresa
reforça que sempre segue as regras de licitações e as leis dos países em
que atua”.
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PS.: Hélio Bicudo foi um dos fundadores do PT e integrou a administração de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo.
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