segunda-feira, 3 de outubro de 2011


A FARRA DA CASERNA

Desde 15 de agosto, a Procuradoria-Geral da República analisa uma representação encaminhada pelo Ministério Público Militar. Trata-se de um pedido de investigação “em desfavor” do comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, citado num espinhoso escândalo de corrupção, talvez o mais ruidoso da Força em seus 363 anos de história. Ao todo, 25 oficiais de variadas patentes, incluindo sete generais e oito coronéis, são suspeitos de integrar um esquema que fraudou licitações, superfaturou contratos, fez pagamentos em duplicidade e pode ter desviado dos cofres públicos ao menos 15 milhões de reais entre 2003 e 2009, segundo os cálculos do Tribunal de Contas da União (TCU).
O rombo, na verdade, pode ser maior. Apenas um dos envolvidos no escândalo, o major Washington Luiz de Paula, acusado de montar a rede de empresas fantasmas beneficiadas no esquema, acumulou uma fortuna pessoal que surpreendeu os investigadores.
Dados obtidos por CartaCapital revelam que o militar, com renda bruta mensal estimada em 12 mil reais, teria cerca de 10 milhões de reais de patrimônio em imóveis, incluindo um apartamento na Avenida Atlântica, em Copacabana, bairro nobre na zona sul do Rio, estimado em modestos 880 mil reais, certamente por falta de atualização. Seria proprietário ainda de duas casas na Barra da Tijuca, avaliadas em 2,9 milhões de reais cada. Em nome de seu sogro, que recebe uma aposentaria de cerca de 650 reais, estaria registrado um luxuoso apartamento de 2,8 milhões de reais na Barra (organograma à pág. 29). O inquérito que apura o caso revela, ainda, que o major movimentou mais de 1 milhão de reais em sua conta em apenas um ano.
Fadado a decidir se indicia ou não o chefe do Exército, o procurador-geral Roberto Gurgel terá ainda de tomar uma posição também sobre o foro privilegiado dos generais, que só podem ser julgados pelo Superior Tribunal Militar (STM), onde até agora um único general foi condenado, e posteriormente absolvido no Supremo Tribunal Federal (STF).
A manutenção da regalia tem sido con­testada pelo promotor da Justiça Militar, Soel Arpini, há ao menos quatro anos. Arpini sustenta que "só a Constituição pode criar foro por prerrogativa de fun­ção", e no caso dos generais não foi bem assim que aconteceu. O privilégio nasceu a partir de uma lei ordinária por iniciati­va do STM. Isso criou uma situação inco­mum que o promotor resume numa sim­ples comparação: "Se um general come­te um crime militar, é processado e julga­do pelo STM. Se o crime é comum, o pro­cesso corre na Justiça Federal".
A Procuradoria-Geral da Justiça Mili­tar remeteu essa representação de Arpini, sobre o impasse do foro privilegiado, em abril de 2008. Gurgel ainda não tomou de­cisão, tampouco tem um prazo legal para se manifestar. Mas, por certo, o chamado "prazo moral" já foi por água abaixo.
Diante da gravidade das denúncias de corrupção a envolver oficiais-gene­rais do Exército, talvez Gurgel se anime a desengavetar o tema. Ou será o caso de se pensar ao contrário? Em razão disso é que tudo poderá permanecer deitado eternamente nesse "berço esplêndido": a gaveta do sen hor procurador-geral.
Por trás da emersão dessas denún­cias existe um problema imperceptível para a sociedade civil: um conflito la­tente entre os oficiais engenheiros e os oficiais combatentes.
O general Enzo Peri é caso raro, raríssi­mo, de um engenheiro à frente do comando do Exército. Curioso porque o primeiro comandante foi o legendário Benjamin Constant, engenheiro de ide ias positivis­tas - "Ordem e Progresso" - até hoje gra­vadas na bandeira nacional republicana.
Com Peri, os engenheiros, natural­mente, galgaram postos de influência como nunca antes. Surge daí, entre ou­tras questões de ciumeira política, a re­ação dos chamados oficiais combatentes: artilharia, infantaria e cavalaria.
O conflito chegou a um militar a quem se atribui a construção do meticuloso dossiê de denúncias de bandalheiras no Departamento de Engenharia e Cons­trução (DEC) do Exército. Um vírus ino­culado a partir do contato com o quase sempre suspeito Departamento Nacio­nal de Infraestrutura de Transportes (Dnit), cujos casos recentes de corrupção levaram à queda do ministro dos Trans­portes, Alfredo Nascimento.
Neste momento, o suposto denuncian­te, segundo fontes militares, estaria rece­bendo pressão dos dois lados. Dos "enge­nheiros", para que não insista com no­vas denúncias. Dos "combatentes", para que denuncie mais e, se possível, entre­gue supostas gravações telefônicas em seu poder, de conversas comprometedo­ras entre os militares denunciados.
Uma auditoria do Tribunal de Contas da União, concluída no fim de junho, re­vela que o general Per i teria beneficia­do empresas ligadas a militares e ex-mi­litares com dispensas de licitação en­tre 2003 e 2007, quando ele chefiou o DEC. Cargo que só deixou ao assumir o Comando do Exército no governo do presidente Lula. Peri foi mantido na função por Dilma Rousseff.
A análise de mais de 200 convênios firmados pelo DEC e pelo Instituto Mi­litar de Engenharia (IME) com o Dnit permitiu aos técnicos do TCU concluir que "houve fraude generalizada, me­diante conluio entre militares e empre­sas de fachada".
Em mais de cem páginas fica comprovado, de acordo com quatro técnicos da­quele tribunal, o envolvimento de deze­nas dc oficiais e civis numa amplitude de irregularidades jamais constatada em organismos militares. Coordenados pelo coronel Paulo Roberto Dias Morales, os convênios previam que o Exército faria estudos de viabilidade de obras do Dnit, como melhorias na BR 101, que percorre o litoral brasileiro e é uma das mais ex­tensas do País. Partiram dele os pedidos de contratação, na maior parte com dis­pensa de licitação, para as companhias beneficiadas no esquema.
Apenas no período em que o general Peri esteve à frente do DEC foram assi­nados 27 acordos com a Fundação Ri­cardo Franco, que subcontratou ao me­nos 15 empresas ligadas a militares e ex ­militares. Fundada em 1997, em apoio ao Instituto Militar de Engenharia (IME), a fundação que tem o nome do patrono da engenharia militar no Brasil recebeu 85 milhões de reais em quatro anos. A ad­ministração da entidade está a cargo de oficiais da reserva, em especial daqueles originários do próprio IME. Inclusive por ex-comandantes do instituto, uma escola de excelência no setor que atrai alunos militares de todo o continente.
As virtudes do IME podem ficar manchadas pela corrupção de alguns oficiais que não merecem proteção so­lidária do Exército.
"Chama a atenção que vários dos con­tratos - decorrentes das dispensas de li­citação - foram pagos com celeridade in­comum, no mesmo dia da ratificação con­tratual, a exemplo do Contrato 10/2005, ratificado pelo general Enzo Martins Peri em 23/12/2005 e com pagamento imedia­to de 2,3 milhões de reais na mesma data, exclusivamente com base em declaração formal do coronel Dias Morales de que os estudos e serviços de engenharia ha­viam sido executados. Tal situação reve­la, ao menos, um descontrole na realiza­ção de pagamentos antecipados", consta­ta o TCU, que havia requisitado informa­ções sobre as investigações desenvolvidas no Ministério Público Militar, no Rio.
O major Washington de Paula é aponta­do pelos auditores do TCU como respon­sável por "montar as empresas de facha­da e maquinar, em parceria com o coronel Dias Morales, todas as fraudes".
A situação é notável. Os quadros so­cietários dessas companhias eram com­postos de parentes do major Washing­ton de Paula e uma legião de "laran­jas", além de pessoas com diferentes relações econômicas e profissionais com esse mesmo militar.
É o caso da Novo Ambiente. Os técni­cos do TCU identificaram, por exemplo, a "prática reiterada" de irregularidades que resultaram no direcionamento de várias licitações a essa empresa, cujo sócio, Mar­celo Cavalheiro, está indiciado em IPM, juntamente com o major, por peculato e outros crimes. E ainda poderão respon­der por "formação de quadrilha", um cri­me não previsto no código militar.
O descuido dos acusados é impressio­nante. "O valor total dos contratos firma­dos pelo IME com a Novo Ambiente nos úl­timos dois anos foi de, aproximadamente, 3 milhões, o que representou 76% dos re­cursos empregados em todas as contrata­ções realizadas pela Organização Militar no período", ressalta o laudo.
Só mesmo o sentimento de impuni­dade dos envolvidos pode explicar ta­manha desfaçatez.
"A equipe pôde constatar in loco a ocorrência de diversas irregularidades no Contrato 11/2009, decorrente de dis­pensa de licitação firmada com a Novo Ambiente. O objeto, serviços de repara­ção manutenção e adaptação do rancho do IME, apesar de já pago na sua totalida­de, inclusive com acréscimo de 25% que jamais foi formalizado, encontrava-se em andamento, sem previsão de conclusão."
Este, contudo, é apenas um exem­plo de serviços que foram pagos, mas não executados.
A maioria das empresas sob suspei­ta não funcionava nos endereços forne­cidos à Receita Federal e alguns sócios, sem relação de parentesco com o onipre­sente major, declararam morar até em favelas. Um caso ilustrativo foi revelado pelo jornal O Globo, em maio de 2010.
A GNBR recebeu. entre 2004 e 2008, ao menos 3,3 milhões de reais em pagamen­tos bancários feitos pelo IME. Apesar dos valores elevados em contratos com o instituto militar, a empresa estava re­gistrada num endereço fantasma do Jo­ckey, bairro pobre de São Gonçalo, região metropolitana do Rio. Um dos sócios foi localizado. Trata-se do faxineiro Alfre­do Balbino, que morava no Complexo do Alemão. Ele diz desconhecer a existên­cia da empresa e garante que sua assina­tura foi falsificada. "Não sou laranja, sou um laranjão. Se tivesse essas empresas todas, eu empregava meus parentes que não têm trabalho", afirmou à época. Mi­údos e graúdos nesse sentido são iguais. Se tivesse oportunidade de agir assim repetiria o hábito dos verdadeiros sócios da empresa de empregar os parentes.
O TCU aponta para "a conduta cul­posa dos dirigentes máximos do IME e do DEC". Os técnicos ressaltam que "a conduta omissiva do gestor proporcio­nou que funcionários, sob sua supervi­são, praticassem atos desabonadores da função pública, propiciando a ocorrên­cia de diversas irregularidades". Em ou­tras palavras, o atual comandante do Exército e os demais generais citados no processo- devem ser responsabilizados ainda que não fique comprovado que as falcatruas os tenham favorecido.
CartaCapital solicitou, sem sucesso, en­trevistas com os principais envolvidos no caso, incluindo o general Peri, além de ten­tar esclarecimentos no Centro de Comu­nicação Social do Exército, que não res­pondeu às indagações sob a justificativa de que "os fatos estão sendo apurados na esfe­ra da Justiça Militar e, de acordo com a le­gislação em vigor, não cabe à Força emitir qualquer informação sobre o assunto".
Certo é que o Exército tinha conheci­mento de várias anormalidades há tem­pos, e muito certamente blindou o assun­to, como faz costumeiramente em nome de um princípio danoso: preservar a ima­gem da instituição. Outra auditoria do TCU, concluída em 2005, apontava uma série de irregularidades, algumas classifi­cadas como graves, em contratos do IME com o Dnit. Na ocasião, os técnicos do tri­bunal estranharam a coincidência de só­cios em empresas que disputavam licita­ções relacionadas a uma obra da BR-101 no trecho do município de Osório, na di­visa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. As empresas que competiam en­tre si pertenciam às mesmas pessoas. O TCU recomendou a anulação das licita­ções, mas o então comandante do IME, general de brigada Ernesto Ribeiro Roza­ni, alegou falta de base legal para anular o processo e recorreu da decisão.
No início de 2009, uma denúncia anô­nima motivou a abertura de sindicância conduzida pelo DEC, então sob comando do general Marius Pinto. Hoje na reser­va, ele disse a Carta Capital que teve aju­da "até mesmo do serviço de inteligência", mas esbarrou nas limitações naturais. La­mentou, por exemplo, não dispor da possi­bilidade de quebrar sigilos telefônicos.
O general desmentiu o boato que cir­cula no meio militar de que teria afas­tado o coronel Dias Morales da função e forçado a reintegrá-lo por "or­dem superior". "Isso não ocorreu nem ocorreria comigo", negou com ênfase. O Centro de Comunicação Social do Exército havia apresentado outra ver­são no ano passado. Informou que, em razão da investigação feita a partir da denúncia anônima, "apesar de não te­rem surgido dados comprobatórios de responsabilidade por irregularidades administrativas", os "militares envolvi­dos foram afastados das funções".
Essa resposta gera duas novas per­guntas. Um dos afastados teria sido o coronel Dias Morales? E ainda mais, por que razão as mesmas denúncias após divulgação pela mídia provoca­ram a abertura de inquéritos?
Tudo começou a mudar quando a de­núncia, em dezembro de 2009, chegou ao setor de inteligência do Ministério Pú­blico Militar, no Rio de Janeiro. E, após análise criteriosa, foi encaminhada no mesmo mês para a Procuradoria-Geral da Justiça Militar, em Brasília.
A procuradora-geral, Cláudia Már­cia Luz, abriu um Procedimento de In­vestigação Criminal (PIC). Um gesto formal e sem conseqüência.
Paralelamente, sem que se soubesse.
Justiça. Cláudia Luz indiciou seis generais, mas tardou a levar EnzoPeri ao foro competente
O Tribunal de Contas da União tomou a iniciativa de auditar as atividades do IME, Dnit e DEC desde 2005. Somente quando a auditoria do TCU foi vazada é que se soube que ele dormia na gaveta da procuradora-geral da Justiça Militar.
Roberto Gurgel e Cláudia Luz gostam de entoar canções de ninar para denún­cias importantes. Só mudam a cantiga quando ouvem as trombetas da mídia.
Assim, quando trechos da auditoria do TCU foram revelados, ela reagiu sobres­saltada. Oficiou ao comandante do Exér­cito, Enzo Peri, O pedido de investigação sobre seis generais denunciados pelos técnicos. Mas ela se estancou diante de uma situação incômoda para ela. O gene­ral Per i também era responsabilizado na mesma auditoria. O que fazer?
Carta Capital acabou por influenciar a procuradora a decidir, ao publicar (na co­luna Rosa dos Ventos, edição 659) que ela teria de levar o comandante do Exército ao foro competente, o Supremo Tribunal Federal, por meio do Procurador-Geral da República.
Ninguém mais, ninguém menos que o doutor Gurgel.
É na gaveta dele que o problema ago­ra dormita.

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