A história do pedreiro e do vendedor que se descobriram empresários e donos de uma fortuna de 8 milhões de reais. Mas há um senador no meio do caminho
Na sexta-feira passada, o pedreiro Roberto Ferreira da Cunha cumpriu normalmente sua rotina. Acordou às 5 da manhã. entrou em seu carro (um Uno modelo 1996), tomou café num bar (dois pastéis e um copo de leite) e seguiu para o trabalho (uma obra na periferia de Brasília). Ao meio-dia, parou para almoçar (um prato feito de arroz, feijão e carne assada). Seguiu no batente até as 7 da noite, quando voltou direto para casa (ele mora de favor com os três filhos na casa de uma irmã, a 40 quilômetros da obra). As contingências adiaram a parada programada no supermercado para comprar "umas coisas" para ajudar no almoço de sábado. Ele tinha apenas 3 reais no bolso. Vida dura demais para os padrões de alguém que tem 8 milhões de reais em uma conta bancária. O pedreiro não sabia que ele é um dos mais novos integrantes da seleta categoria dos milionários brasileiros. Não sabia que é um bem-sucedido empresário que enriqueceu fazendo negócios com o governo. Não sabia que ficou milionário graças a um senador da República, que ele não conhece e de quem nunca ouvira falar. Roberto Cunha não sabia de nada disso porque não era mesmo para ele saber. Roberto foi escalado para ser um "laranja", tendo seu nome usado criminosamente para ocultar os verdadeiros beneficiários de mais um golpe contra os cofres públicos disso, sim, muita gente sabia.
Durante cinco meses, o senador Romero Jucá, líder do governo, fez visitas ao Palácio do Planalto, a gabinetes de ministros, mobilizou aliados e fez todo tipo de pressão ao seu alcance para conseguir viabilizar a nomeação de Oscar Jucá Neto, seu irmão mais novo, para a diretoria financeira da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Havia muita resistência dentro do governo. Afinal, Jucazinho, um gestor com larga experiência em administrar restaurantes, tinha um currículo que impressionava. Em sua ultima passagem pejo governo, em 2009, como assessor da Infraero, a estatal que cuida dos aeroportos, ele acabou demitido no meio de uma faxina ética semelhante à que o governo promove agora no Ministério dos Transportes: A força do irmão poderoso, entretanto, prevaleceu e, em 20 de junho, Jucazinho assumiu o cargo e, por dever de ofício, a guarda de um cofre por onde passarão neste ano nada menos que 5 bilhões de reais. E eis que não tardou para que se descobrisse o porquê do interesse da família Jucá em ocupar o posto. Na semana passada, VEJA revelou que o primeiro ato formal de Jucazinho foi liberar irregularmente um pagamento a uma empresa de armazenagem que mantinha fazia anos um litígio com a Conab.
Na surdina, sem consultar ninguém, desrespeitando todos os procedimentos burocráticos e pareceres jurídicos e aproveitando a ausência do chefe. Jucazinho mandou depositar 8 milhões de reais na conta da empresa Renascença. Detonou uma crise política dentro do governo e dentro do PMDB. Informado, o ministro da Agricultura, Wagner Rossi, quis demiti-lo. O vice-presidente Michel Temer, presidente de honra do PMDB, não se opôs, mas foi pressionado pelo poderoso Jucá. Na semana passada, depois da reportagem de VEJA, a ministra Gleisi Hoffmann, chefe da Casa Civil, convocou Rossi para uma reunião, ouviu dele um relato detalhado sobre o caso e, por fim, acertou-se que Jucazinho deixaria o cargo, o que aconteceu na quinta-feira. Oficialmente, ele saiu por espontânea vontade, para permitir que os supostos erros administrativos sejam apurados com isenção por uma comissão de sindicância. Para garantir que o caso se resolvesse em paz, ficou combinado que não se falaria em fraude, muito menos em Polícia Federal ou Ministério Público. Um grupo de servidores vai ser encarregado de apurar as irregularidades. Enquanto isso, os 8 milhões de reais permanecerão bloqueados na conta da Renascença. O senador Jucá, embora irritado com o desfecho, concordou com a solução que, de certa forma preservou a ele e o irmão - pelo menos por enquanto.
A Renascença tem ligações históricas com os Jucá. Um primo do senador já esteve entre os cotistas da empresa, desde que começou a cobrar a suposta dívida milionária da Conab, porém, ela foi "transferida". Um dos compradores foi o pedreiro e agora milionário Roberto Cunha. O outro é o vendedor Madson Martins de Oliveira. Funcionário de uma concessionária de carros de Brasília, Madson também não sabia que era empresário. Mas ele se recorda de um episódio que pode ajudar a elucidar o mistério. Conta que, certa vez, recebeu uma oferta tentadora. Desempregado, foi abordado por um homem que perguntou se ele assinaria um documento em troca do equivalente a 150 reais. Assinou sem pestanejar. Informado sobre seu perfil secreto, Madson se assusta: "O que eu faço agora? Tenho cinco filhos e não posso perder o emprego". Assim como Roberto, o vendedor de carros, como sócio da empresa, é dono de uma fortuna. Outro pobre milionário.
O pedreiro e o vendedor encarnam o papel daquilo que o jargão do submundo da corrupção chama de "laranja". Suas identidades foram usadas por pessoas que têm algo a esconder. Os interesses da Renascença são defendidos por gente bem mais graúda – e influente o bastante para fazer o irmão do poderoso líder do governo no Senado arriscar a própria cabeça e efetuar o pagamento à revelia de todas as normas legais e dos princípios da boa administração. Na Conab, havia um lobby cerrado para que o dinheiro da Renascença fosse liberado. Não por coincidência, logo depois da decisão de Jucazinho de pagar os 8 milhões de reais, eis que surgiu o homem que se apresentou como o verdadeiro dono da empresa. TraIa-se de Hélio Mauro Umbelino Lôbo, ex-deputado federal e prefeito biônico de Goiânia na ditadura. "Eu sou o verdadeiro dono da empresa", garantiu, de olho nos milhões. O ex-parlamentar confirma que, a pedido de um amigo, transferiu as cotas da Renascença, mas não sabia que os novos donos eram laranjas. Por meio de uma procuração, entretanto, Hélio continua com todos os direitos de operar a empresa, inclusive abrir e movimentar as agora milionárias contas bancárias. Humm ... Ex-sócios, ele disse que só conhece a família Jucá de nome. Em entrevista a VEJA, Oscar Jucá afirmou que foi vítima de uma armação: "E tenho como provar".
O uso de laranjas para esconder malfeitorias é apenas um dos muitos truques usados por políticos e empresários para fazer mágica com dinheiro público. Há duas semanas, o Tribunal de Contas da União concluiu a maior fiscalização já feita sobre os sistemas de compras do governo federal. A investigação começou" em abril do ano passado e analisou 142524 contratos firmados pelo governo Lula entre 2006 e 2010 por órgãos públicos e empresas estatais. O montante ultrapassa a cifra de 104 bilhões de reais. VEJA teve acesso ao relatório, cujos dados são uma radiografia de como a inventilidade de maus empresários, somada à leniência dos órgãos públicos, leva o país a jogar fora boa parte dos impostos arrecadados com rigor draconiano de quem trabalha. No total, o relatório apresenta mais de 80000 indícios de irregularidades, que vão de contratos assinados fora do prazo permitido por lei à contratação de empresas de parlamentares, de licitações com empresas fichas-sujas à participação de funcionários públicos em negócios com empresas das quais são sócios, da farra de aditivos ao uso de empresas-laranja para manipular licitações
Esse aparente descontrole integra a gigantesca engrenagem na qual estão, de um lado, empresas interessadas em sugar os recursos estatais e, do outro, grupos políticos que loteiam o estado com o objetivo de destinar para seus escolhidos as verbas federais. O mais gritante exemplo do tamanho do descontrole é o caso das empresas que disputam licitações e após apresentarem o melhor preço, acabam desistindo ou sendo desclassificadas por não atenderem às regras dos editais ou não honrarem sua proposta. O tribunal encontrou 31 793 companhias que se enquadram nesses casos, envolvendo licitações de 6 bilhões de reais. De acordo com o relatório, assinado pelo ministro Valmir Campelo, uma dessas empresas chegou a falhar 12370 vezes. São números estarrecedores que levam, na melhor hipótese, ao reiterado atraso nas licitações e, na pior, à compra de produtos por preços bem acima do valor de mercado. Essa é a missão, por exemplo, das chamadas empresas-coelho, apelido dado às firmas que entram em concorrências com um único propósito: fazer um lance muito abaixo do valor de venda para que as demais participantes desistam da licitação, deixando o caminho livre para que outra empresa do esquema se apresente, só que cobrando valores inflados. A prática é recorrente. E o mais grave: os órgãos públicos, que deveriam abrir processos administrativos contra as empresas que atrapalham as licitações, seriam coniventes. Não se tem notícia de um só caso em que empresas-coelho tenham sido punidas por essa conduta. São malandragens sublimes que se tornaram rotina na relação entre comprador e vendedor, em que apenas um lado ganha - e todos os brasileiros perdem. Os auditores também encontraram empresas que têm servidores públicos e até membros da própria comissão de licitação como sócios. O prejuízo, ainda não calculado, facilmente ultrapassa a casa dos 10 bilhões de reais.
A investigação do Tribunal de Contas envolve parlamentares em atividade. A Constituição é clara em relação ao impedimento de deputados e senadores de controlar empresas que tenham negócios com o poder público. Diz o artigo 54: "Os Deputados e Senadores não poderão ( ... ) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público". Parece claro. Mas, ao cruzar a relação de bens dos parlamentares eleitos em 2006 com a das empresas que firmaram contratos com o governo ou com empresas estatais, vários nomes conhecidos apareceram. Para evitar o aprofundamento da apuração, o TCU apartou uma lista e classificou-a como sigilosa. Nela consta o nome das empresas, dos órgãos suspeitos e, obviamente, dos parlamentares. VEJA teve acesso a parte da relação. Estão entre os acusados o senador Eunicio Oliveira, do PMDB, e os deputados Paulo Maluf, do PP, e Felipe Maia, do DEM. Os três negam envolvimento em irregularidades. Para o procurador do TCU Marinus Marsico, o relatório serve como um chamado: "As auditorias do tribunal deveriam ser lidas com mais atenção pelos gestores públicos. Ali não há nenhum tipo de interferência na atividade do Executivo, nenhum tipo de perseguição. O que há é uma tentativa de racionalizar essa gigantesca máquina pública". Os ministros encaminharam o documento ao Ministério Público Federal e ao Conselho de Ética da Câmara para as providências cabíveis contra parlamentares, servidores e empresas. Ao Ministério do Planejamento caberá uma ampla reformulação dos sistemas de compras do governo, para evitar que corrupção, fraudes e as sazonais safras de laranjas se perpetuem como regra de convivência da política brasileira.
quarta-feira, 27 de julho de 2011
POBRES HOMENS RICOS
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